O Foral Manuelino de Olivença, que era já um monumento em si mesmo, integrado na vasta reforma dos forais promovida por D. Manuel I, tornou-se, agora, numa obra verdadeiramente monumental por impulso da sua terra. Esta Carta de Foral tem a curiosidade de ter sido assinada, em Santarém, por D. Manuel, em 1510; mas só ter chegado a Olivença, cinco anos depois, em 1515, datando daí a sua aplicação. O 5.º Centenário foi, por isso, assinalado em Olivença em 2015, evento em que foi anunciado que iriam iniciar-se os trabalhos para uma sua publicação em livro. Esta obra levou quase sete anos de muitos trabalhos de extensa investigação e primor gráfico, que se concluíram há meses.

Tão bom que até parece impossível

Quando, em 26 de Março, fui a Olivença, assistir à primeira apresentação pública do livro de José Antonio González Carrillo e dos Professores Mário Rui Simões Rodrigues e Saúl António Gomes com a Carta de Foral de Olivença, dada pelo rei D. Manuel I, realmente não tinha ideia do que ia encontrar. Imaginava que fosse bom, mas nunca imaginei que fosse tão bom: tão exaustivo, tão rigoroso, tão profundo, tão inovador, tão explicativo, tão belo. Na verdade, a obra é tão boa que até parece impossível.

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Curiosamente, este livro, em dois volumes, ricamente encadernados e com ilustrações preciosas, é, de alguma forma, uma metáfora da experiência de muita gente com Olivença, ela mesma. Pelo menos, foi a minha experiência pessoal: imaginamos que Olivença seja uma boa terra, mas nunca imaginamos que seja tão boa quanto é. Cremos que visitá-la será bom, mas não imaginamos como é apaixonante conhecê-la.

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Já tinha estado em Olivença nos anos ‘70. Tinha ido lá. Olhei, mas realmente saí sem ter visto e, muito menos, entendido. Todos nós sabemos, ou achamos que sabemos, a “questão de Olivença”. E, dominado pela “questão” – que obviamente não se vê –, fui ver… e não vi. O meu foco na questão impediu-me de ver realmente Olivença. É assim com muita gente ainda: obcecam-se tanto com a “questão” que não cuidam de ver, ouvir e conhecer.

Comecei a entender Olivença a partir de 2010, quando, na Assembleia da República, como Presidente da Comissão Parlamentar de Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas, conheci os amigos oliventinos da Além-Guadiana (entre os quais o José António González) e começámos a trabalhar em conjunto: ou melhor, o Quíni, o Eduardo, a Raquel e o José António a puxar e a desenvolver o seu projecto de biculturalidade, envolvendo a valorização da matriz portuguesa; e eu a apoiar, a sugerir, a colaborar e a procurar trazer ao conhecimento de Portugal essa nova atitude, esse olhar novo. É comum ouvir-se que Olivença é “filha de Espanha, neta de Portugal” – hija de España, nieta de Portugal. Olhando nessa perspectiva, esses amigos eram netos que queriam o avô mais perto. É o que temos tentado: que o avô esteja mais perto.

Temos feito um caminho magnífico. É outra vez a metáfora desta edição do Foral: sabíamos que ia ser bom, mas nunca imaginámos tão bom. O rumo era prometedor, mas fomos além das promessas que víamos. À biculturalidade, acrescentámos o bilinguismo – como nesta edição do Foral manuelino – e a dupla nacionalidade. Tudo está em desenvolvimento.

Que terra é esta tão aberta e franca?

Há, porém, dificuldades que persistem e tentam atravessar-se. Olivença é uma terra que desperta um certo nervosismo nalguns espíritos e ambientes. Quero abordar a minha visão deste problema. Não há razão para esse nervosismo; e está mal provocá-lo e alimentá-lo. Quem quer bem a Olivença e aos oliventinos não deve fazê-lo. De todo!

Não estamos em 1801 ou em 1817. Muito menos no tempo dos Templários nos séculos XII e XIII, ou na guerra da Restauração, ou noutros conflitos que atravessaram a nossa História. O passado deve ser conhecido, não é para ser revivido. Sabemos que Portugal e Espanha têm uma ideia diferente a respeito de Olivença. É assim há 200 anos. Poderá ser por 200 anos mais. Não sabemos. Não depende de nós.

O que sabemos são factos que fazem da história concreta de Olivença uma história preciosa. Sabemos, por exemplo, que, no século XIX, quando os dois Estados acordaram demarcar a fronteira, começaram a colocar marcos na foz do rio Minho, no Norte, vieram por aí fora para o interior e, depois, para Sul e pararam ao chegar ao rio Caia, porque não estavam de acordo a partir daí. Pararam, mas não começaram uma guerra. Assinaram o Tratado de Limites, em 1864. Pararam, para voltar mais tarde. Depois, no século XX, os dois Estados retomaram a demarcação, agora a partir da foz do Guadiana, no Sul, e subiram para Norte, por aí fora, até chegarem à ribeira de Cuncos, cerca do actual Alqueva, porque não estavam de acordo a partir daí. Pararam, mas não começaram uma guerra. Assinaram a Convenção de Limites, de 1926. Pararam, até poderem voltar mais tarde.

Daqui resulta um facto que é único na Europa (e creio que no mundo): um território que não tem fronteiras oficialmente demarcadas no solo – e não passa nada.  Olivença e Táliga não têm marcos fronteiriços na fronteira oriental (interior), porque Espanha não concorda que seja aí; e também não têm marcos fronteiriços na fronteira ocidental (junto ao Guadiana), porque Portugal não concorda que seja aí.

Esta história curiosa, que resulta da História dos dois países vizinhos e desta terra, faz de Olivença, espiritualmente, uma terra franca, uma terra sem fronteiras. Antes de Portugal e Espanha aderirem ao que é, hoje, a União Europeia, já Olivença não tinha marcos fronteiriços. É como se caminhasse à frente. E aquele desentendimento quanto à demarcação da fronteira não impediu a construção de uma nova ponte, que permita a comunicação directa com Elvas, interrompida pela destruição da Ponte da Ajuda, no princípio do século XVIII. (Em brincadeira, costumo dizer que, agora, com a nova ponte, já podemos ir a Olivença sem entrar em Espanha.) A ponte aí está, há 20 anos, a prestar bons serviços aos dois lados do Guadiana e a melhorar a vida e a economia de Olivença. Sem barreiras.

Estes são os grandes sinais que nos devem iluminar. O facto de os dois Estados terem teses diferentes quanto a um tema, sem dúvida importante, não paralisa, nem deve paralisar-nos e, menos ainda, constituir obsessão doentia. Ao contrário, sem ignorarmos que a questão existe, devemos ver, descobrir, conceber, definir e cultivar todos os caminhos (sociais, económicos, culturais e cívicos) que nos tornem mais próximos, que intensifiquem o nosso intercâmbio, que melhorem o nosso conhecimento, que consolidem a nossa amizade, que nos façam verdadeiramente comuns. Como disse no plenário da Assembleia da República, em Julho de 2015, «não é de estranhar que, olhando toda a História peninsular, pudesse haver, quanto a Portugal e Espanha, um lugar em que a fronteira não é bem fronteira, em que a fronteira não é uma linha tangente, mas linhas secantes dos dois, uma fronteira que, em vez de separar, abraça e reúne.»

Várias vezes tenho pensado nisto: se eu fosse oliventino, quereria essa sábia e mágica ambiguidade. Nem só espanhol, nem só português – ambas as coisas. Porquê? Primeiro, porque penso que é assim, no coração e na espiritualidade da comunidade de Olivença. Segundo, porque é isso que interessa e que tem valor. É isso que faz Olivença diferente de qualquer outro lugar, diferente de qualquer outra terra, e que a faz merecedora de ser procurada, cada vez mais procurada por muitos que a quererão conhecer.

Que terra é esta? Que terra é esta onde se cruzaram guerras, mas é chão acolhedor de paz e seu farol? Que terra é esta em que os Estados que não concordam a seu respeito não têm na fronteira juridicamente disputada nem um só soldado, nem um único polícia? Que terra é esta, tão aberta e franca?

Apetece visitá-la, na verdade. Apetece conhecê-la. É assim com Olivença. Tanto mais assim quanto mais entendermos e servirmos o seu mistério.

O Foral, marco da monumentalidade manuelina

A obra com a prometida edição do Foral manuelino teve a sua segunda apresentação pública, em 1 de Julho, em Coimbra, na magnífica Biblioteca Geral da Universidade a que pertencem dois dos autores, Prof. Mário Rui Rodrigues e Prof. Saúl Gomes – depois de, em Março, ter sido apresentada em Olivença, a que pertence o outro autor, José Antonio González, um dos históricos da “Além-Guadiana”. É uma obra que contribui muito para aquele desígnio e para alimentar o encanto por Olivença.

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Duvido que haja outra terra que tenha, sobre o seu Foral, uma obra de tanto valor, categoria e importância. D. Manuel I é um rei que deixou profundas marcas em Olivença, registadas nos seus monumentos: a Igreja de Santa Maria da Madalena, o mais relevante templo de estilo manuelino, a seguir aos Jerónimos; a belíssima porta do Palácio Municipal, ex libris da terra; e sobre o Guadiana, a Ponte da Ajuda, ligação fundamental, em ruínas desde o século XVIII, mas que continua a encantar pela sua beleza e mistério. Agora, foi acrescentado mais um monumento manuelino, que não fica atrás dos outros: esta edição monumental do monumento que é o seu Foral de 1510.

O livro, nas 750 páginas dos seus dois volumes, não se limita estritamente ao Foral – e pronto, já está! Não. Desde logo, trata o Foral com carinho e desvelo, explicando-o e contextualizando-o no seu tempo. E, depois, vai ao pormenor de incluir um extenso Glossário e um mais extenso Vocabulário, enriquecendo a compreensão do português quinhentista em que está escrito o original, o que permite a qualquer estudioso – ou apenas curioso – a rigorosa e pormenorizada compreensão do seu texto. Esta parte da obra torna-a também num precioso monumento linguístico.

A obra mostra ainda como os autores, viajando muito para lá do Foral de D. Manuel I, estudaram afincadamente a história de Olivença desde antes de existir e indo até à pré-história. Não conheço outro trabalho assim e creio que não existirá. Todo o 1.º volume é dedicado à narrativa histórica das terras de Olivença desde os tempos mais antigos até meados do século XVII. E o 2.º volume, além do Foral, do Glossário e do Vocabulário, inclui uma cuidada Cronologia de acontecimentos desde 1165, nos tempos de D. Afonso Henriques, até 1631, no reinado do último dos Filipes. É extraordinário o que aqui podemos encontrar e que já permitiu corrigir algumas ideias erradas que eram correntes.

A obra é bilingue, com os textos em espanhol e em português, lado a lado. E estou certo de que a versão em espanhol é tão cuidada quanto pude verificar ser a versão em português. Até nisso, no bilinguismo, a obra é um monumento da nova Olivença do século XXI.  E creio que vai ao encontro da minha tese no sentido de, sem quebra das posições jurídicas dos dois Estados vizinhos e sem qualquer agressão unilateral, normalizar e tornar fluidas as relações de incidência prática, quanto a Olivença, entre as administrações dos dois países.

O encontro em Olivença

A linha que sustento, respeitando a realidade, assenta no que, em Direito Romano, se dizia rebus sic stantibus: mantendo-se as coisas como estão, isto é, os dois Estados cada um com a sua ideia e as autoridades em exercício. Não podemos ficar parados. Não podemos esperar que Espanha mude a sua ideia, nem podemos esperar que Portugal mude a sua. Cada qual afirma os seus fundamentos. É natural que os espanhóis (ou a maioria deles) sigam a ideia de Espanha e que os portugueses (ou a maioria deles) sigam a ideia de Portugal. Basta perceber isso mesmo: que Espanha considera que Olivença é território espanhol e administra-o; e Portugal considera que Olivença é território português, mas não o administra. É isso que, em Portugal, observamos e devemos dizer: território português, sob administração espanhola.

Basta saber isso, com clareza e sem hostilidade, para avançarmos: intensificação da cooperação económica, crescimento do comércio e do turismo, incremento do intercâmbio cultural e cívico. Isso é que é servir Portugal, Espanha e Olivença. A fronteira pode continuar por definir – não corremos o risco de tropeçar nela. Os Estados concordam em que não estão de acordo, como sucedeu no Tratado e na Convenção de Limites. Às vezes, é assim. Nada de mais.

Esta Carta de Foral, reeditada 500 anos depois, pode ser marco simbólico dessa mudança mental e desse avanço prático. É um documento de Olivença sobre si mesma, espelhando a sua personalidade e ancestral autonomia municipal. É uma edição bilingue, luso-espanhola. É um documento português e da história portuguesa de Olivença. É uma edição espanhola da Universidade da Extremadura (titular da obra), da Deputação de Badajoz e do Ayuntamiento de Olivença. É uma colaboração com a capacidade científica da Universidade de Coimbra. É uma co-autoria de um intelectual criativo de Olivença e dois professores e historiadores de Coimbra.

Deixando aos Estados a questão que lhes pertence, faremos como ensinou o grande poeta espanhol, António Machado: Caminante, no hay camino, se hace camino al andar. O futuro será magnífico. Olivença chegará ao lugar que merece. O Foral Manuelino de 1510, nesta riquíssima edição, será guia da aproximação e referência para esse andamento.

NOTA: Este artigo é a adaptação da comunicação feita pelo autor, em 1 de Julho de 2022, na Sala São Pedro da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, por ocasião da apresentação da obra monumental com o Foral Manuelino de 1510, de Olivença.