No passado dia 21 abriu a época de aplicação dos fundos do Plano com o “lançamento dos Avisos para a Apresentação de Manifestações de Interesse pelas Instituições de Ensino Superior dos «Impulso Jovens STEAM» e «Impulso Adultos»”. As intenções são de bondade e justificação inquestionáveis, formar mais portugueses e formá-los mais, formá-los até melhor.

Não vou comentar intervenções oficiais, nem dos membros do painel, seja para não revelar simpatias, seja porque não tenho treino de comentário político ou desportivo, uma limitação séria nos dias de hoje. Sou apenas académico, irrecuperável, com desejos para a universidade e instituições de ensino superior (IES) em geral, e ainda com algumas ilusões para a realidade portuguesa. Vou apenas defender que o modelo de aplicação, concebido e guiado pelo Estado e setor público, terá pouca probabilidade de mudar alguma coisa. Ou então mudará, para que tudo fique na mesma. Aplica-se aqui citação: “a definição de insanidade, ou de penosidade (versão Elisa Ferreira), é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes”.

Na formação e educação superior há um registo de iniciativas sempre lançadas com boas intenções, mas de vida efémera e impacto desconhecido. Números básicos como “quanto custou a formação de cada estudante/formando?” ou “o que é que ele/ela ganhou nos dez anos seguintes?” são difíceis de encontrar (há estudos, p.e. por Pedro Portugal, provavelmente a necessitar de revisão, sobre o valor de uma licenciatura ao longo da vida). Respostas a perguntas básicas como “que incremento de empregabilidade foi adquirido pelos estudantes/formandos dos programas?” ou simplesmente “quem é que pediu este programa ou iniciativa?” também não são evidentes.

Historicamente temos uma sucessão de apostas na formação ou qualificação. Os programas financiados pelo Fundo Social Europeu da famosa CEE, anos 90, extravasavam as IES e formaram um bom número de pessoas, já nessa altura em tecnologias digitais. Não sei de fonte formal o financiamento global por formando, mas posso garantir, por experiência vivida, que esse custo – para formação menos qualificada que os graus académicos pré-Bolonha – era muito maior do que o do estudante do ES. Como foi público e é por muitos conhecido, algumas mega-iniciativas acabaram à porta do tribunal, ora do lado de dentro, ora do lado de fora. O impacto, que o houve decerto, é desconhecido, pelo menos para a generalidade dos cidadãos.

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Em 2009/2010, no auge do voluntarismo pré-troika, o MCTES estabeleceu com as IES uma “coisa” chamada Contrato de Confiança, que justificava um aumento de 100 milhões de euros no orçamento das IES e iria conduzir a mais 100 mil novos diplomados nos 10 anos seguintes. Nessa altura, as IES diplomavam 76 mil estudantes, em 2019 são 83 mil (fonte PORDATA). A maior dificuldade é que nem gente havia para formar porque o inverno demográfico estava, e está, para ficar. Claro que se poderiam criar umas graduações mais simples e/ou graduar a mesma pessoa três vezes. A troika acabou com esses amanhãs iluminados e o prazo acabou no ano passado sem que ninguém se recorde. Esses “contratos”, com diferentes nomes, continuam a ser um ritual cuja natureza já é hoje hermética (só alguns iniciados a entendem). Já agora, o aumento na produção de diplomados face à velocidade de cruzeiro de 2010 parece corresponder a cerca de seis mil estudantes durante dez anos (fonte PORDATA).

Já desde meados da primeira década do século começou a ser considerada a realidade, generosa, dos novos públicos. Nela pontua a ideia dos “maiores de 23”, uma via de acesso ao ES para pessoas com mais de 23 anos de idade. As escolas de referência nunca levaram o assunto a sério, seja por incapacidade de encaixar o conceito, por formas curriculares burocráticas que persistem, ou por reservas à capacidade dos candidatos. Em 2018 (Público, 29/04/2018) representavam uns quatro mil em 370 mil, ~1% dos estudantes do ES e com tendência decrescente. A crise sanitária não deve ter melhorado o cenário. A procura objetivamente não existe. Uma iniciativa aparentemente com sentido não tem correspondência com necessidades nem aspirações e no fim não contribui para melhores níveis de formação da sociedade como um todo.

Recentemente, também com boas intenções, embora a revelar alguma esquizofrenia conceptual, abriu-se a “via verde” para que os jovens que tenham frequentado o ensino profissional possam aceder à universidade. De acordo com a comunicação social (Público, 2021/06/05), apenas 700 dos 5400 estudantes usaram esta via de acesso, que é usada em mais de 90% por institutos politécnicos (não conheço a distribuição geográfica). É no mínimo debatível esta contradição entre incentivar ensino profissional e a seguir tentar que os seus diplomados vão suprir a falta de estudantes em IES. Se se abrem caminhos, seria de esperar que levassem a destinos diferentes.

Então para que servem estas iniciativas e agora o Plano? O substrato é muito frequentemente a procura de soluções para sustentar IES, rígidas em recursos humanos e endogâmicas, financiadas de forma desastrada há décadas, em muitas circunstâncias em retração de públicos, em vários casos sem capacidade de inovação e sem outro propósito que não seja aguentar o orçamento, ano após ano. Mesmo as instituições centrais, com mais estatuto académico, são seduzidas por estes programas de formação para os quais têm pouca vocação e competências indiretas. Simplificando e exemplificando, com conhecimento de causa, muitos professores de Engenharia Informática (como eu) e respetivas IES acham que sabem formar aceleradamente programadores para empresas de outsourcing (quando o cenário geral do ensino da programação em contexto universitário é em si mesmo complexo, a necessidade de diplomas formais neste setor está a diluir-se e muitas competências são hoje adquiridas em ambiente empresarial e/ou de formas flexíveis).

Seguindo a lógica tradicional, o plano vai (pseudo) financiar IES (pseudo, porque os custos destes programas “tocam frequentemente duas vezes”), (pseudo) formar um número relevante de pessoas (pseudo, porque as competências são definidas de forma enviesada), e com, minha aposta, uma limitada e nunca medida (pseudo) eficácia (pseudo, porque não verificável nem falsificável). Claro que, se faltarem as ideias, podemos sempre construir infraestrutura, como quartos em residências físicas ad nauseum para um futuro digital, com imenso potencial de “inaugurabilidade”.

Que fazer então? Simplesmente, e por uma vez, fazer ao contrário. Não aceitar nenhuma iniciativa oriunda e criada em instituições de ensino, mas apenas de empresas e organizações da sociedade civil com fundamentação e planos de justificação do investimento, com compromisso de investir qualquer coisa dos seus fundos próprios –  no free lunch – e de enquadrar uma percentagem dos estudantes/formandos que desejam. Neste quadro, as IES conseguirão descobrir vocação e competências para satisfazer visões empresariais e sociais com que venham a ser confrontadas e integrar esse esforço como parceiras. Aliás, há recentes iniciativas de associação empresarial ou de caráter fundacional que podem bem ser um catalisador e gerador credíveis das manifestações de interesse solicitadas.

Este é um exemplo evidente da crítica que tem sido feita a um Plano essencialmente guiado pelo Estado e onde existiria alternativa. Mesmo que, dada a fragilidade e granularidade do nosso setor empresarial e da sociedade civil, fosse mais difícil de concretizar. Naturalmente é também necessária uma resistência tenaz por parte dos poderes decisórios, leia-se Governo e afins, às aspirações de replicação regional dos tiques do Estado central, dos autarcas com síndroma de privação de anúncios de iniciativas concelhias e dos próprios académicos que pretendem conhecer os espaços de conhecimento em que as empresas e organizações da sociedade civil vivem e concorrem.

Em todo o caso, sejamos positivos. Não é obrigatório repetir modelos infrutíferos do passado e todos podem ficar felizes no fim, em particular as gerações que vão viver para além de 2050.