Não é de todo necessário enfatizar a crise do sistema educativo e da escola pública em particular. Não é necessário recordar que a degradação da escola pública nos vai custar prosperidade, felicidade e paz social por muitos anos. Não será justo reduzir o problema ao tema dos professores, num país cuja cultura na verdade nunca priorizou a educação, o estudo e o mérito e não tem nenhuma marca de elevadores, muito menos os sociais.

A atual luta dos professores tem uma miríade de variáveis, tangíveis e intangíveis, que é difícil sistematizar ou ordenar para descobrir alguma solução. Falta orçamento, falta bom senso, falta respeito, faltam provavelmente ideias fora da caixa para criar algumas saídas exploratórias.

Tenho, no entanto, uma convicção. Como pano de fundo desta crise está uma progressiva e histórica proletarização, a cristalização de uma cultura de classe cercada e enclausurada, a subalternização e funcionalização de dezenas de milhares de pessoas qualificadas. Durante décadas, cada professor individualmente e a classe em geral encarquilharam-se na sua concha, mundo fechado. Apenas tenho como fundamento para esta opinião a minha observação desde há 40 anos.

Em 1982, por um período curto de seis meses e para suprir faltas temporárias de professores, na altura devidas à tropa ou à maternidade, fui professor do ensino básico. Numa escola da periferia de Lisboa, nas traseiras de um bairro de lata, a atitude de todos, professores e alunos, era ainda assim positiva. Apenas estranhei a cultura da “sala de professores”, em que a frase chave, quando a campainha tocava para a aula, era do tipo “be careful out there”, estilo série Balada de Hill Street. Outra das referências permanentes era “o Ministério” – entidade fantasmagórica que pairava sobre a vida da escola. Nesse ano o Papa visitou Lisboa e o Conselho Diretivo mandou toda a gente para casa em muitos dias de Maio.

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Cerca de 20 anos depois, 2003-2009, fui Presidente (Conselho Diretivo e Científico) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Nessa época, a FCUL ensinava cerca de 1000 alunos em licenciaturas de Ensino (Matemática, Física e Química, Biologia e Geologia). Vários fenómenos me espantaram.

Em primeiro lugar, por razões que seria interessante estudar, os alunos dessas licenciaturas, mal entravam no primeiro ano – onde se ensinavam matérias básicas das várias ciências – pareciam iniciar a militância como estagiários da FENPROF, invocando uma “consciência” de classe despropositada.

Em segundo lugar, as combinações de disciplinas, grupos de docência bidisciplinares, na área das ciências são, a meu ver, mais um exemplo da guetização intelectual dos professores. Os últimos representantes destas combinações científicas serão Lavoisier (Física-Química) ou Darwin (Biologia-Geologia). Do ponto de vista dos grandes desafios da atualidade valerá a pena refletir se, por exemplo, Biologia e Química ou Física e Geologia não seriam mais compatíveis com uma formação científica e tecnologicamente alinhadas com o século XXI.

Em terceiro lugar, já nesse tempo, o Ministério da Educação, ocupado pela Ministra Maria de Lurdes Rodrigues e pelo Secretário de Estado Valter Lemos, deparava-se com a redução da necessidade de professores, por redução da população escolar. Com razão ou sem ela, os alunos das licenciaturas de Ensino viram limitadas as possibilidades de realizar estágios, que eram curriculares e remunerados e obrigatórios para acabar o curso. Deu-se a situação bizarra de os alunos do 5º ano desses cursos receberem subsídio de desemprego pelo estágio que não conseguiam fazer.

Acrescem a estes fatores históricos o facto de, durante muitos anos, os alunos colocados em licenciaturas de ensino no ensino superior terem baixas notas de acesso e essa época, final do século XX, ter sido um momento importante do desenvolvimento universitário das Ciências da Educação que, independentemente do interesse científico de algumas teses, conduziu também à consolidação de uma “religião” própria dos professores, ou seja, um vocabulário, um grupo de apóstolos e alguns autores canónicos. Tudo reforçou o fechamento da comunidade.

O fim das licenciaturas de ensino e a atual formação de professores a nível de Mestrado (pós Bolonha) não será ainda muito significativo (vejam-se as pirâmides etárias dos professores), mas estando a liturgia consolidada, o processo parece estar garantidamente perpetuado.

Não tenho qualquer pretensão a mencionar soluções para a conjuntura, mas sugeriria que se pensasse nesta realidade sociológica, antropológica e epistemológica da comunidade de professores. A recuperação da dignidade passará por uma organização inteligente do sistema (recordo uma discussão algorítmico-matemática sobre a colocação dos professores e a minha perplexidade sobre a recolocação anual de 150 000 professores – tipo exército de uma grande potência), por um orçamento ajustado e outras regras de bom senso.

Há mais que a conjuntura e as condições desta geração. Estruturalmente, seria importante destruir as muralhas onde a comunidade de professores foi enclausurada, nas suas dimensões científicas, sociais e intelectuais. Os professores deviam ser pessoas de alta qualidade intelectual, cientificamente deste século, bem pagos e com alternativas que lhes permitam ser exigentes e responder a exigências. Enquanto forem uma classe fechada, proletarizada e a marchar ao ritmo dos tambores sindicais, a nossa educação e o futuro da nossa sociedade marca passo. As crianças e jovens não merecem.