As propinas no ensino superior regressam ciclicamente ao espaço público como a cruz que a juventude carrega desde os anos 90, a oitava praga do Egipto que se instalou entre nós, uma aventesma que nem os rabos ao léu, a versão lusitana da “liberdade” de Delacroix, eliminou.

O quadro legal das propinas foi (re)aberto em 1992, com a lei 20/92, promulgada por Mário Soares, referendada por Aníbal Cavaco Silva, aprovada numa Assembleia da República presidida circunstancialmente por Leonor Beleza e oferecida como a fava do bolo-rainha a Manuela Ferreira Leite que teve de aturar o sharivari. Alguma teoria interessante sobre o tema pode ser lida no Acordão 148/94 do Tribunal Constitucional, motivado pelo pedido de fiscalização sucessiva do Presidente da República. Nesse acórdão vale a pena ler a análise sobre o cálculo do valor (na realidade as propinas não foram criadas, foram atualizadas) ou a noção constitucional de “gratuitidade” que parece corresponder, ao invés do que o senso comum sugere, a algo que se paga com uma pitada de sal (em linguagem jurídica diz-se com um granu salis ou, mais sofisticadamente, proporcionalidade).

Depois de mais de trinta anos de experiência, quer com as propinas, quer como professor universitário e, por algum tempo, decerto demais, dirigente de instituições de ensino superior, concluo que em Portugal as propinas são o análogo contemporâneo do heliocentrismo ou da esfericidade da Terra. Ninguém compreende e só confunde as cabecinhas. Governos, direções das instituições, estudantes e famílias – por ordem decrescente – não percebem o sentido da coisa e à primeira oportunidade a ela recorrem para cruzadas em nome da fé na juventude. Vamos lá a ver.

Os governos, provavelmente desde a origem e através de sucessivas leis (um decreto de referência é o Decreto-Lei 418/73 do raro e irrepetível ministro Veiga Simão, que fixou as propinas em 1200 escudos – 1200$00 de 1973 correspondem a 280€ hoje – PORDATA) encararam as propinas como um meio de financiamento complementar para umas universidades honradas, mas pobrezinhas. A ideia governamental sempre foi aconchegar o orçamento das universidades – que o país saloio quer mostrar ao estrangeiro. Podia ter sido criar um mecanismo de autonomia das instituições, se esses governos percebessem o que é isso, mas não foi.

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As direções das instituições – seria exagero chamar-lhes generalizadamente lideranças – sempre à míngua de orçamento, precisam das propinas para fechar os exercícios contabilísticos. O Orçamento de Estado paga (quase) os docentes e funcionários, as propinas pagam o que falta e mais a conta de eletricidade, de limpeza e segurança – sobram uns trocos para coffee breaks para as visitas. Por um breve momento, quando Mariano Gago – que tinha uma visão própria – criou o regime fundacional (Lei 62/200 – Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior), as propinas, como componente importante das receitas próprias, ganharam mais sentido. A lei determina que uma instituição apenas poderia ter acesso a esse regime de autonomia acrescida se tivesse mais de 50% de receitas próprias. Estimo que várias instituições que adotaram esse regime já não cumprem o requisito, quer porque as propinas globalmente se têm reduzido, quer porque a dependência do OE terá aumentado. Mas também ninguém se importa, a começar por uns grupos de personalidades de reconhecido mérito, pomposamente designados Conselho de Curadores. As receitas das propinas podiam ter sido enquadradas como elemento relevante da autonomia, mas não foram.

Os estudantes, quer porque muitos não as pagam diretamente, quer porque consideram as propinas uma dimensão fatal da realidade académica, não relacionam propina com contribuição para a instituição, seja por que visão do mundo for. Os mais coletivistas poderiam assumir a propina como uma manifestação da máxima “de cada um segundo as suas capacidades”, os mais mercantilistas como um “necessário pagamento de um serviço”. A propina é essencialmente uma chatice da idade, subsequente às borbulhas da adolescência, e o melhor era acabar com elas. Perante a alternativa de usar as receitas de propinas em conjunto com a ação social para redistribuir oportunidades e criar um elemento de justiça social no contexto académico (que não tem como obrigação nem missão resolver as desigualdades do mundo), a cultura dominante, ou mais ruidosa, é simplesmente acabar com tudo e partir para a próxima onanística luta. Individual e associativamente podiam pensar mais e propor melhor, mas não o fazem.

As famílias, incluindo o estudante que é trabalhador e se autofinancia, são, provavelmente as que têm a visão mais otimista das propinas. Elas correspondem a um investimento direto para um futuro mais próspero ou mais autónomo ou mais livre dos filhos, ou de si próprio. Este é o retorno que se espera de um valor anual que, nos anos normais pré-geringonça, andava próximo dos 1000€/ano. Atualmente, a desesperança das novas gerações, ilustrada pela emigração e incapacidade da economia em usar e remunerar competências, coloca a questão: podia ter sido um bom investimento, mas será que foi?

A sociedade em geral tem atitudes díspares. Alguns que pensam e fazem contas insistem que o valor das propinas não é fator relevante de acessibilidade ao ensino superior, mas sim as desigualdades sociais e de oportunidades mais estruturais. Outros recorrem aos estereótipos clássicos para comparar as propinas com os consumos de cerveja ou com o preço dos telemóveis. Na nossa tradição católica, o efeito moralizador e disciplinador de um pagamento visível não se aplica. Aliás a criação do regime de prescrições por insucesso académico, introduzido pela lei 37/2003 de 22 de Agosto – Bases de Financiamento do Ensino Superior, rapidamente foi “adaptado” às realidades locais e estimo (apenas assisti aos primeiros exercícios criativos da sua aplicação) que tenha um efeito marginal.

Em resumo, não existe pessoa ou instituição que compreenda para que servem as propinas (provavelmente o mesmo ocorre com os impostos, mas aí ainda há uma teoria geral). As propinas são uma sarna para quem as paga e outra para quem as cobra. Se a juventude está em dificuldades, devolver as propinas, mais uns bilhetes de comboio, um livro dos cinco para a viagem e uma semana nas pousadas (da juventude, claro) tornam a vida cor-de-rosa, psicológica e politicamente falando. São uma fantasia do nosso imaginário afetivo, por isso é hoje evidente: “Propinas? Amem-nas ou acabem com elas”. Ninguém as entende, só dão dores de cabeça e o mundo ficava perfeito sem elas.