Em 1974/75, meu pai, de meia-idade, resolveu estudar Direito. Pediu-me, por pudor, que lhe comprasse os livros das cadeiras do primeiro ano, Marx, Engels, Lenine, Estaline e Mao Tsé-Tung, o que fiz com orgulho adolescente, filial e em sintonia com o espírito do tempo. Nesse ano, sem pandemia mas com PREC, passou administrativamente a todas as cadeiras e continuou (o mesmo deve ter sucedido a Durão Barroso ou Santana Lopes, Marcelo Rebelo de Sousa seria assistente). Na bibliografia de referência, um outro livro, de autor esquecido por mim, a Teoria Geral do Estado, dizia “o Estado é a sociedade politicamente organizada”. Ao que parece, Portugal passou administrativamente nessa cadeira e perdeu (mais) uma oportunidade de ser um país desenvolvido.

A pandemia, um incidente crítico a nível social, vem por a nu as debilidades de um Estado incongruente e de uma sociedade amadora (mesmo no melhor sentido do termo). A última campanha eleitoral suscitou algum debate sobre o papel e responsabilidades do Estado. Mais estatistas ou mais liberais, admitamos que, dispensadas as caricaturas, todos esperamos do Estado a assunção de responsabilidades de defesa, segurança e proteção face a calamidades, atentados à liberdade ou violações de direitos. Seria de esperar que o Estado, a tal sociedade organizada, dispusesse de instrumentos para assumir estas responsabilidades. Ora bem, não dispõe. Pelo menos no que ao conhecimento diz respeito.

Perante situações difíceis, o Estado fraqueja, o Governo recorre ao voluntarismo e à dedicação amadora com um arranjo mediático inspirado no fado. Exemplos da Primavera de 2020: a produção de máscaras de vinil por todos os que tinham uma impressora 3D à mão, testes nos institutos de investigação de norte a sul, ventiladores com ou sem certificação, aplicações de tracing em institutos de reconhecida capacidade tecnológica, álcool das melhores empresas vinícolas. Nenhuma instituição do Estado assumiu publica e notoriamente a liderança destes esforços (a não ser, provavelmente, os gabinetes ministeriais que precisaram de organizar a agenda das televisões).

Inverno de 2021: na fase atual da pandemia, em que os números são alarmantes, os designados especialistas são muito ouvidos e até respeitados. Há umas reuniões no Infarmed (a caminho Constantinopla) entre eles e decisores políticos. Eles, os especialistas, são pessoas cientificamente competentes, sérias, alguns que conheço e por quem tenho consideração e amizade, mas nenhum é “pago” para fazer o que faz. As instituições do Estado, como por exemplo o Instituto de Saúde Ricardo Jorge, são um acessório sem capacidade de liderança. Simplificando, quem é o nosso Anthony Fauci, imunologista e homem de imensa paciência, diretor há décadas do National Institute of Allergy and Infectious Diseases, USA? Não há. Quem é a instituição e o líder deste esforço científico? Não conheço. Esperamos diariamente que cada um dos especialistas, nas horas livres – porque têm outras coisas para fazer – apresentem os seus modelos e tenham tempo de aparecer num canal de televisão.

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Esta situação ilustra cruelmente a degradação da capacidade científica e técnica do Estado. Não menoriza o investimento em Ciência, mas demonstra o custo da aplicação desorganizada de fundos e da incompreensão das prioridades. Temos hoje em dia muitos mais investigadores dedicados a problemas interessantes (nas universidades em particular), mas continuamos sem profissionais científicos a cuidar, nas instituições do Estado, de problemas críticos e de responsabilidades inadiáveis. De 2000 a 2018, Portugal triplicou o número de investigadores. Nesse período, o peso dos investigadores no Estado reduziu-se de 20% para 3% do total.

Criou-se muito emprego científico, desdenhou-se o trabalho profissional. Um Estado moderno e decente não devia fazer outsourcing da sua capacidade de decisão de base científica.

O amadorismo português não é um problema novo. Permito-me citar Jorge de Sena, em 1954: “Não é difícil compreender as razões, ou algumas delas, de isto ser assim. Não houve nunca entre nós nas épocas sincrónicas do desenvolvimento do Ocidente, aquele estádio durante o qual o liberalismo das profissões, apoiado num individualismo humanista, transitou do amadorismo medieval, enquadrado nos esquemas fixos das corporações familiares e do funcionalismo da Corte, para o profissionalismo tecnicista, integrado no Estado moderno, de que é ele próprio o principal agente integrador.” Jorge de Sena, “O amadorismo português”, Diário Popular, 15 de Outubro de 1954, In O Reino da Estupidez – I, Edições 70

Há outras razões para a inépcia e incapacidade de decisão do Estado, que resultam da generalização do conceito de confiança política como critério de nomeação de quadros, uma versão menos poética e mais corrosiva do amadorismo. Esse tema é um tema para outras opiniões.

É inevitável a ocorrência de futuras calamidades, sejam elas provocadas por micro-organismos, por abalos sísmicos, por pragas de gafanhotos, por ataques informáticos, explosões nucleares, ou pela eterna estupidez humana. Que a tragédia atual sirva para refletir sobre a fragilidade científica do Estado português.

Não basta ter uma sociedade cientificamente dotada. A organização das nossas capacidades tem de privilegiar o cumprimento da missão básica do Estado e deixar para o outro lado do espelho a satisfação de desejos pueris de corporações. Organizem-se…