Em maio de 2017, estando eu de visita a Paris, um amigo meu ofereceu-me um livro de banda desenhada intitulado La Présidente [A Presidente], primeiro volume da série homónima escrito por François Durpaire e ilustrado por Farid Boudjellal.
O livro, que é uma obra de ficção política, fora publicado em 2015, e narrava os primeiros 100 dias da Presidência de Marine Le Pen, que ela teria conquistado em maio de 2017.
Tendo por subtítulo «Não poderás dizer que não sabias…», o livro pinta um retrato sombrio das mudanças radicais introduzidas por Le Pen para transformar a Quinta República Francesa num regime autoridade fortemente apoiado – na imposição da lei e da ordem – na repressão policial, no controlo dos principais órgãos de comunicação social, na expulsão em massa dos imigrantes ilegais, e na utilização abrangente da vigilância digital.
A França abandonaria a Eurozona, para reintroduzir o Franco, Le Pen saíria da NATO, e estabeleceria relações de amizade com Donald Trump e Vladimir Putin.
O livro, e a série em geral, vai beber inegavelmente em Soumission [Submissão], o romance de Michel Houllebecq publicado poucos meses antes do primeiro volume de La Présidente.
No livro de Houllebecq, porém, Le Pen só atingiria uma alta votação em 2022, mas perderia, ainda assim, as eleições presidenciais para Mohammed Ben-Abbes, o líder ficcionado do Partido da Irmandade Muçulmana.
Ben-Abbes depressa islamiza a França e estabelece relações geopolíticas estreitas com o Norte de África e o Médio Oriente. Ao invés, no segundo volume da série La Présidente, Le Pen – cujo mandato assume um cariz crescentemente totalitário – manda prender Mohammes Labbes, líder ficcionado da Irmandade, por alegado colaboracionismo com uma potência estrangeira.
Curiosamente, tanto o romance Soumission como a banda desenhada La Présidente têm desenlaces relativamente pacíficos.
Após alguma agitação pública, Ben-Abbes consegue pacificar a França, que acaba por submeter-se, mais do que por ser submetida, à Islamização – sobretudo, através da corrupção das elites intelectuais. No derradeiro volume de La Présidente, Emmanuel Macron bate confortavelmente Le Pen nas eleições presidenciais de 2024, e restaura a ordem liberal-democrática.
Não há fins felizes
O final de La Présidente fica, porém, envolvido numa triste ironia: no 2024 da vida real, Macron perderia com Le Pen.
Os mais recentes resultados das eleições francesas de 2024 falam por si. A lista de Le Pen, «La France Revient», venceu as eleições para o Parlamento Europeu com 31,37 por cento dos votos, enquanto o bloco de Macron, «Besoin d`Europe», obteve apenas 14,6 por cento. E o «Rassemblement National» de Le Pen e seus aliados venceu a primeira ronda das eleições parlamentares antecipadas com cerca de 33 por cento dos votos, contra os 21,27 por cento obtidos pela coligação de Macron, «Ensemble», que ficou em terceiro lugar, a seguir à aliança de esquerda, a «Nova Frente popular», com 28,14 por cento.
Se a decisão enormemente arriscada de Macron de convocar eleições parlamentares antecipadas abrir caminho para um governo de extrema-direita, a longa história do impulso dado pelas forças centristas franceses à subida da extrema-direita ao poder atingirá o seu clímax.
A lição histórica de Mitterrand
Poucos se recordarão, hoje, de que foi o presidente socialista François Mitterrand quem, em meados dos anos de 1980, manobrou para aumentar a notoriedade da Frente Nacional de extrema-direita, então marginal, liderada por Jean-Marie Le Pen, pai de Marine.
A fim de debilitar o «Rassemblement pour la Republique», de centro-direita, Mitterrand deu instruções aos três principais canais televisivos de França para que dessem maior cobertura ao «Front National». O resultado, foi a obtenção pela extrema-direita de 10,05 por cento dos votos nas eleições para o Parlamento Europeu de 1984 – um êxito assinalável quando comparado com os miseráveis 0,81 por cento obtidos pelo «Front National» nas eleições parlamentares de 1981.
Mas o truque de Mitterrand não foi inteiramente bem-sucedido: o crescimento da extrema-direita não prejudicou o centro-direita tanto quanto ele havia desejado. E, assim, Mitterrand foi ainda mais longe, e instituiu um sistema de representação proporcional para as eleições parlamentares de 1986, sendo que a introdução de tal sistema visava especificamente trazer o «Front National» para a Assembleia Nacional, e assim gorar os planos do centro-direita de conseguir uma maioria parlamentar.
Também esse novo truque de Mitterrand falhou: embora a extrema-direita tenha, de facto, entrado na Assembleia, e embora o «Rassemblement pour le République» tenha, de facto, sentido mais dificuldades, o centro-direita acabaria por formar uma maioria parlamentar e um governo de coligação.
No entanto, e desde então, o «Front National» ganhou raízes em França como importante força anti-sistema.
O ano de 2024 no último volume da série de banda desenhada La Présidente é o ano em que o Macron de ficção salva a França de uma ditadura de extrema-direita. No mesmo ano, o verdadeiro Presidente Macron poderá ter prestado à Quinta República Francesa um serviço ainda pior do que o prestado pelo Presidente Mitterrand.
A França não tem um governo de extrema-direita desde a França de Vichy (1940-1944) sob o Marechal Philippe Pétain, que foi um regime autoritário de extrema-direita que colaborou com o Terceiro Reich.
Hoje, perante a guerra da Rússia contra a Ucrânia, o gradual alheamento dos Estados Unidos em relação aos assuntos europeus, e perante desafios globais como as alterações climáticas e a Quarta Revolução Industrial, uma França em desordem social, política e económica será um desastre para a Europa, e, em última análise, para o povo francês. Esperemos tão só que quem quer que venha a formar o novo governo francês tenha isto em mente.
Publicado originalmente in https://euobserver.com/news/ar4eb1334a