Muito recentemente, foi notícia o pedido de fiscalização da constitucionalidade da Lei n.º 38/2018, de 07 de agosto, relativa à «autodeterminação da identidade de género e expressão de género».
Trata-se de uma iniciativa de 86 deputados (mais de um terço do Parlamento), pedindo ao Tribunal Constitucional que se pronuncie sobre a conformidade com a Lei Fundamental das disposições contidas no art. 12.º do diploma que preveem a orientação do ensino e da educação de acordo com os pressuposto da gender theory.
Em causa está saber se a modelação do ensino segundo tais pressupostos configura ou não uma violação da proibição do Estado programar a educação e a cultura segundo diretrizes «filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas», tal como assegurado no art. 43.º CRP.
A decisão do Tribunal Constitucional não é simples. Exige, em primeiro lugar, determinar se a gender theory – tal como se foi consolidando em finais do séc. XX e implementando em inícios deste século – é uma verdadeira ideologia ou tão só uma expressão aggiornatta de direitos e liberdades individuais. Exige ainda do Tribunal Constitucional a finura de análise (e a não menor coragem) de distinguir entre o que são as causas justas – quanto às quais todos estaremos de acordo – e o fundamento antropológico que as sustenta em algumas agendas políticas, fundamento esse em relação ao qual não é legítimo que se exija uma concordância cega.
Tudo isto, num ambiente de verdadeiro terror mediático, ditado por um totalitarismo da opinião pública que não admite vozes dissonantes.
Impõe-se, portanto, uma reflexão serena e desapaixonada sobre uma questão central para a nossa cidadania. Impõe-se, sobretudo, que não fiquemos aprisionados num discurso emocional, enjeitando as questões que a razão sempre coloca a discursos tendencialmente hegemónicos.
Igualdade e diversidade género são o mesmo que ideologia de género?
Certamente que não. A ideologia de género nada tem que ver com os Direitos do Homem nem com a plena igualdade entre homens e mulheres em todos os campos da vida social, cultural, económica, política, etc. O que está em causa não é, portanto, a elementar justiça entre homens e mulheres na igualdade de acesso ao trabalho, à educação, à saúde, à participação em todos os níveis da organização social, económica e política. Nada tem que ver, também, com a vida sexual de cada um. Menos ainda com o respeito pela auto-determinação pessoal, numa sociedade cada vez mais plural e diversificada.
O que está em causa na ideologia de género é uma nova concepção de pessoa: uma nova resposta à pergunta «o que é o Homem».
Do ponto de vista antropológico, a ideologia de género promove uma nova compreensão da corporeidade: da relação do sujeito com o seu corpo. O corpo passou a ser visto como um objecto extrínseco ao sujeito (que não constitui aquilo que ele é). A masculinidade e a feminilidade são compreendidos como puros produtos sociológicos – ditados por uma maioria cultural dominante –, e absolutamente autónomos e independentes da realidade biológica.
A noção de pessoa torna-se, assim, uma categoria descarnada. Nada nem ninguém a condiciona, nem sequer a sua própria biologia. O sujeito, assim compreendido, é o que quiser ser, em cada momento da sua existência histórica.
Se estamos diante de uma (nova) visão antropológica, porquê qualificá-la como ideologia? Por uma razão simples: porque a ideia ocupa o lugar da realidade. A compreensão da masculinidade e da feminilidade que subjaz à noção de gender parte de uma ideia pré-concebida que vive em constante tensão com a realidade empírica – começando pela própria biologia – e, por isso, deseja alterá-la.
Daqui resulta um forte vocação interventiva: quando a realidade e a própria ciência exata desmente a ideia, a resposta de uma ideologia nunca é a inversão de rota, mas sempre a modificação (agressiva, se necessário), da própria realidade. Sacrifica-se o real, por mais científico que seja, no altar da ideia.
A ideologia de género partilha ainda uma visão da realidade típica do materialismo dialético. A luta de classes sociais é agora substituída por uma luta de classes sexuais: «assim como a meta final da revolução socialista era não só acabar com o privilégio da classe económica, mas também com a própria distinção entre classes económicas» – recordava Firestone, em 1970 –, o que está agora em jogo é «não simplesmente acabar com o privilégio masculino mas com a própria distinção de sexos: as diferenças genitais entre os seres humanos já não importarão culturalmente» (The Dialectic of Sex – The case for feminist revolution. New Iork: William Morrow and Company; 1970, 11).
Uma modelação do ensino sob estas coordenadas (tal como existe) é, claramente, uma orientação ideológica de educação. Educar os nossos filhos na liberdade e respeito pelo outro, não autoriza ninguém – muito menos o Estado – a definir o que é um homem e uma mulher.
Apesar de todo o ruído de fundo, é isto – e apenas isto! – o que está em jogo nesta iniciativa parlamentar!
Doutor em Direito; Professor da Faculdade de Direito de Lisboa