As palavras do Papa Francisco, quando afirmou que estava a rezar e a fazer todo o possível para acabar com a guerra na Ucrânia, constituem mais um exemplo da estratégia diplomática que traçou desde o momento em que o conclave decidiu sentá-lo na cadeira de Pedro. Aliás, a escolha do nome Francisco foi o primeiro sinal dado por alguém que os restantes cardeais foram descobrir numa Argentina marcada por enormes assimetrias sociais e conhecida por ser um alfobre de populistas. Na realidade, quando Jorge Mario Bergoglio deu lugar a Francisco, ficou claro que seria o exemplo de São Francisco e o espírito de Assis que iriam marcar o seu pontificado.
Francisco sabe que São Tomás de Aquino teorizou que Deus governa o Mundo por causas segundas, ou seja, estabelece as leis gerais e depois deixa que os acontecimentos se verifiquem de acordo com essas leis e a vontade dos homens. Uma forma de dizer que só intervém quando julga necessário e, por norma, deixa aos homens a condução das suas vidas. Face à crueldade das imagens que lhe chegam diariamente da Ucrânia, é possível que Francisco considere que talvez se imponha a intervenção divina. Por isso – e para isso – reza.
Por outro lado, ao admitir que está a fazer todo o possível para acabar com o conflito, Francisco reconhece, ainda que implicitamente, a diplomacia informal servida por uma enorme rede de informação espalhada pelo Mundo. Uma rede alicerçada nas igrejas locais ligadas a Roma. Igrejas que ajudaram à edificação da Europa e à evangelização dos locais para onde a expansão conduziu os europeus. De facto, não foi por acaso que o marinheiro de Gama, ao desembarcar em Calecut, afirmou vir em busca de cristãos e pimenta. Uma ação que continua no presente, embora com objetivos mais meritórios, uma vez que está virada para o ecumenismo religioso. O espírito de Assis criado por São João Paulo II, em 1986, quando reuniu nesse local os representantes das diversas confissões para rezarem e jejuarem pela paz.
Francisco sabe que a Ucrânia é maioritariamente ortodoxa, embora dividida entre os 58% que obedecem à Igreja Ortodoxa de Kiev, liderada por Epifânio, e os 25% que continuam a seguir a Igreja Ortodoxa de Moscovo, representada na Ucrânia pelo metropolita Onofre. Por outro lado, percebe que não foram os 9 ou 10% de fiéis ucranianos com obediência a Roma que levaram o Presidente Zelensky a dizer-lhe que era o convidado mais esperado no país.
Um conflito, ainda que da responsabilidade inicial apenas de um dos contendores, obriga qualquer Chefe de Estado a uma diplomacia formal. Um cuidado redobrado no caso do Vaticano e não devido à sua exígua dimensão. Na conjuntura atual, Francisco não se encontra numa situação muito diferente daquela que se colocou a Pio XII quando a ideia de Hitler visando a expansão do espaço vital levou à II Guerra Mundial. Por isso, as palavras papais têm de ser muito ponderadas e os gestos simbólicos não podem colocar em causa a diplomacia formal e colocar em risco a diplomacia informal e a confiança lograda no terreno.
Assim, se é um facto que Francisco ousou quebrar a tradição ao dirigir-se pessoalmente à Embaixada da Rússia junto da Santa Sé para apelar ao fim da guerra, não é menos verdade que não se disponibilizou para assumir a figura de mediador. Uma disponibilidade que Putin dificilmente aceitaria, conhecida que é a cooptação a que procedeu da hierarquia dirigente da Igreja Ortodoxa de Moscovo e que levou o Patriarca Cirilo a afirmar publicamente que o Governo de Putin era um presente de Deus e que os ucranianos que se opunham à Rússia eram forças do mal. Cirilo que, no entanto, constitui uma peça fundamental para a superação do cisma que há quase mil anos divide católicos e ortodoxos.
Face ao exposto, percebe-se que Francisco, apesar de ter vindo a endurecer o discurso contra a invasão russa e de ter frequentes gestos simbólicos, como exibir uma bandeira da Ucrânia ou chamar para junto de si crianças ucranianas refugiadas, não se queira envolver na questão de forma passível de afrontar Putin e Cirilo. A diplomacia formal, consubstanciada no envio de dois emissários à Ucrânia, os cardeais Konrad Krajewski e Michael Czerny, enquadra-se nesse âmbito, uma vez que ambos estão habituados a tratar de aspetos humanitários e a guerra é fértil no semear do sofrimento. Porém, longe dos holofotes da comunicação social, a diplomacia informal do Vaticano continua a procurar construir no terreno os laços possíveis. Depois, se Deus for servido, virão as pontes.
A meu ver, é Jorge Bergoglio, o cardeal habituado a conviver com a pobreza e a miséria humanas, a ser Francisco.