Tem sido apanágio da comunidade internacional elencar, com arrojo semântico, uma panóplia de soluções para os chamados Estados em conflito, frágeis ou, simplesmente, falhados. Soluções que quase sempre, nada têm a ver com o problema de fundo que pretentem debelar. Um faz de conta ou miopia diplomática? É o caso da Guiné-Bissau, um país desavindo com os caminhos do progresso, onde a ONU, a União Africana, a CEDEAO (Comunidade dos Estados da África do Oeste) e a própria União Europeia, num alinhamento geopolítico inquietante, têm advogado até à exaustão a realização de eleições, a reforma da defesa e segurança e a revisão constitucional como forma de estabilizar o país e permitir criar condições para o desenvolvimento.

No periodo que se seguiu ao último golpe militar de 2012, as referidas entidades defenderam, com unhas e dentes, a realização de eleições legislativas em 2014 como via para reconciliar o país com os caminhos do progresso. O leitor bem se recorda que, um ano depois do plesbiscito, o país entrou em regime de desgovernação, com a Assembleia Nacional Popular trancada a sete chaves e os deputados forçados à licença sabática de três anos com vencimento – coisa rara no mundo!

Os senhores de Bissau recorreram, então, ao santo milagreiro de Conacri, que tem a fama de nunca trazer boas novas ao povo guineense. E, sem surpresas, regressados à capital e com a acta desaparecida, as partes abriram novas frentes de luta política de acesso ao pote de mel.

Como se não bastasse, as mesmas entidades puseram fé na realização das eleições legislativas de 10 de Março de 2019, como a água benta para exorcizar o diabo da crise política permanente que assola o sofrido povo da Guiné. Preferimos não maçar o leitor com os eventos subsequentes que permitiram criar mais um mito: as eleições presidenciais de 27 de Novembro de 2019 são etapa fundamental para, de uma vez por todas, estabilizar a Guiné-Bissau!

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Foi justamente a invocar o acordo de Conacri que a CEDEAO, a organização sub-regional a quem a Guiné está, de facto, entregue em tutela desordeira, sem visão, nem estratégia, lançou um apelo ao novo Presidente para iniciar o processo de revisão constitucional a concluir no prazo de seis meses, com um referendo.

Importa referir que a actual Constituição, porque padece sobretudo do efeito “copiar e colar”, merece, obviamente, retoques que a enquadrem na nossa realidade e ajustes que lhe confiram modernidade. Contudo, factos irrefutáveis provam que a Carta Magna, além de ser inocente dos males que são inflingidos ao povo, é ela própria vítima, porquanto as suas páginas são sistematicamente rasgadas pelos pseudo-políticos apatrióticos e alienados que têm a audácia de parasitar o aparelho de Estado, viver de expedientes, semear o caos e extrair dividendos à custa do erário público e de apoios da comunidade internacional.

No pretérito 1 de Outubro de 2019, a chefe da equipa do Fundo Monetário Internacional (FMI), a senhora Concha Verdugo-Yepes, a propósito da sua missão de avaliação das vulnerabilidades da governação, proferiu na ocasião a seguinte frase: “A Guiné-Bissau enfrenta problemas profundamente enraizados, de fraca governação e corrupção, que precisam de ser tratados para permitir que realize o seu potencial económico e melhore os padrões de vida da população”. Lapidar!

Tal afirmação, que não mereceu reacção alguma das autoridades de então e tão-pouco dos partidos, é, na verdade, um belo eufemismo para nos dizer que não passamos de um país de preguiçosos, de bandidos e de ladrões. Pasme-se, o mesmo FMI que nenhum país sério e organizado quer às suas portas, mas que, no país dos pedintes, é recebido qual Pai Natal na quadra natalícia, com chupetas e doces para os de sempre açambarcarem à sua vontade, enquanto o país se endivida, perpetuando, assim, a pobreza do nosso povo.

Por conseguinte, é imperioso salientar que não foi por culpa da Constituição que os nossos hospitais estão desprovidos de equipamentos, de medicamentos, de meios de diagnóstico e do pessoal técnico qualificado para dar respostas aos anseios do nosso povo, servindo tão só de antecâmaras do cemitério.

E, a propósito, nem foi por culpa da Carta Magna que o sistema de ensino anda pelas ruas da amargura, com programas educativos caducos e a escola pública assolada por greves sistemáticas já lá vão três décadas!

Mas vamos ainda mais longe:

  1. Não foi por culpa da Constituição que gente que sorveu do erário público enquanto esteve no poder ou ligada à mesma fonte durante décadas, enriquecendo às nossas custas e, só pelo facto de terem mudado de partido ou de polirem os seus discursos nos tempos recentes, deixaram de ser os mesmos carrascos das nossas gentes. Sim, temos memória e não somos parvos! Na Guiné, existe um só sistema, que se fragmenta com a zanga de compadres na luta pelo acesso aos cofres do Estado.
  2. Não foi por culpa da Constituição que temos uma Justiça corrupta, alienada e desacreditada. Veja-se o recente processo de contencioso eleitoral, em que o Supremo Tribual de Justiça acabou por assinar o seu próprio certificado de óbito, deixando o país, de facto, órfão deste órgão de soberania sem o qual o Estado de direito não passa de uma miragem.
  3. A Constituição foi ocultada quando não se constituiu uma equipa sólida, competente e séria para representar o país no Tribunal de Haia, no litígio com o vizinho Senegal (que há muito fez da Guiné província!) sobre a delimitação da zona económica exclusiva. E o resultado foi um traçado oblíquo norte-sul no nosso mar, beneficiando o vizinho com quem temos uma linha recta a delimitar a fronteira terrestre a norte. O vizinho que, para consolidar a sua retumbante vitória e num gesto de falsa boa intenção, propôs aos líderes de então um acordo de exploração de zona conjunta com 15% para nós, 85% para eles!
  4. Não foi por culpa da Constituição que o sistema de esgotos e canalização do país data da época colonial, sem manutenção, nem planos de melhoria e expansão.
  5. Faz pouco da sua Constituição o país que alberga no coração da capital um chiqueiro chamado mercado de Bandim – uma ameaça à saúde pública –, que há muito deveria ter sido desmantelado e instalado noutro lugar, transformando o local actual em espaço verde.
  6. Não foi por culpa da Constituição que o complexo industrial de Cumeré, a fábrica de sumos e compotas da ilha de Bolama e a fábrica de montagem de viaturas Citroën foram vedados ao abandono nos anos oitenta, sem nenhum plano de remidensionamento e optimização do processo de fabrico e logística que os tornasse rentáveis.
  7. Não foi por culpa da Constituição que o país ainda não dispõe de uma fábrica de transformação da castanha de cajú – o seu principal produto de exportação –, preferindo os políticos aliciar os agricultores com falsas promessas de preços elevados.
  8. A Constituição é asfixiada no país onde o arroz é a base da dieta alimentar e onde a natureza tem sido bastante generosa e que continua paradoxalmente a importar esse cereal, mas de qualidade duvidosa para consumo humano!
  9. A Constituição não foi tida nem achada no país conhecido como a maternidade de peixes, mas que não soube criar a sua própria frota pesqueira nacional, limitando-se a contentar-se com alguns milhões de euros que vai recebendo dos acordos de pesca e sem meios para vigiar a sua costa.
  10. A Constituição foi desdenhada quando os serviços de identificação civil do país foram entregues a privados e a base de dados da cidadania guineense fica sedeada algures num país europeu, sem que se saiba se as autoridades nacionais fazem alguma auditoria.
  11. A Constituição foi trancada na gaveta, no país que, dispondo de uma rica História, um mosaico étnico ímpar e uma das duzentas reservas de biosfera da UNESCO (e a tropical húmida mais próxima da Europa) não tenha um “Plano Estratégico de Turismo Sustentável, assente na História (turismo da saudade), natureza, cultura e gastronomia.
  12. A Constituição foi driblada no país de músicos, artistas e escritores talentosos, sem que alguém tenha pensado em criar um fundo de promoção cultural, promover bienais, festivais, prémios literários e, ainda, lançar as bases para fomentar a criação de indústrias criativas.
  13. Não foi por culpa da Constituição que o nosso carnaval – o mais autêntico do mundo – ainda não entrou no cartaz mundial e que esta expressão maior da nossa cultura ainda não viu ser-lhe dedicada um museu.
  14. E nem foi por culpa da Constituição que ainda hoje não existe uma linha de estratégia para restaurar os patrimónios histórico-coloniais de Bolama, Cacheu, Bafatá, etc. – sérios candidatos a património da UNESCO.

Os factos acima enumerados permitem desmistificar um outro fenómeno: o de homens brilhantes que abundam na Guiné! As nossas lideranças não são aquilo que nos tentam impingir: homens e mulheres de grande craveira intelectual e profundamente comprometidos com o país. São, na verdade, gente que, além de brincar aos ministérios, às embaixadas, etc., nunca trabalhou seriamente na vida, com horários para cumprir, prazos para a entrega de trabalhos e outras situações que só quem trabalha ou trabalhou conhece.

Não surpreende, pois, que nenhum desses astros da nossa praça tenha sequer uma obra feita, tal como empreendimentos de relevo ou projectos estruturantes para o país. Apenas brilham no abstracto das suas mentes, qual gatinho que ao espelho vai contemplando um leão de juba farta; e, também pelas suas máquinas de propaganda, que preferem vê-los a suicidarem-se pelo elogio permanente e tolo do que salvá-los pelo estalo da crítica…rigorosamente.

Os tempos não mudaram, apenas mudaram as vontades circunstanciais de alguns. E, como as caras permanecem as de sempre, mesmo mudando a Constituição como o passo mágico para a segunda independência, o porvir de novos conflitos é indissociável da questão da corrupção. E continuará o país de gentes super-brilhantes a segurar a centelha do(s) último(s) na liga das nações, feito carcaça, desprovido da sua identidade e sem pingo de dignidade, permitindo a qualquer um o luxo de pisotear-nos a seu bel-prazer.

Para quando o diálogo franco e a governação com espírito de missão?