Caro Presidente,

Resolvi roubar tempo às minhas obrigações familiares e profissionais, e desembaraçar-me dos trapos de torpor, a fim de escrever este postal de setembro, com aromas da páscoa e do ramadão, porque “nô terra na dana” (a nossa terra está a estragar-se), “nô terra na murri” (a nossa terra está moribunda).

É um postal que tem como pano de fundo as primeiras zonas libertadas. À direita, encontram-se as fotos de Domingos Ramos e Pansau Na Isna. Também pode ver Cabral, o Vasco, porque a luta é a nossa primavera. À esquerda, sempre sorridente, está a Titina, “padida di dus mama” (a mãe de todas as crianças). Estão também a Carmen, a Francisca, o Francisco, o Paulo, o Osvaldo, o Nino. Mais abaixo, como a lista é longa, está estampada a imagem do soldado desconhecido, aquele que também prescindiu da sua juventude para libertar a mãe Guiné , tendo tombado com a arma em punho. E no meio, está aquele filho de olhar “comprido”, Abel Djassi, ou simplemente, Bartaba (saído das líricas dos Super Mama Djombo), o pai fundador, que dá pelo nome de Amílcar Lopes Carbral.

Permito-me, doravante, dirigir-me a si na segunda pessoa do singular, na qualidade de um ex-colega do bairro e do liceu, mas sobretudo pelo facto de nunca se dignar a usar a preceito as vestes presidenciais durante estes quatro anos.

Embora haja matéria para produzir um compêndio de história em vários volumes, é minha intenção escrever um simples articulado, singindo-me a elementos essencias para justificar o meu grito de revolta, que também transporta os murmúrios dos temerosos e o silêncio dos amordaçados, para dizer «i djusta dja » (basta!).

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Não obstante a contestação dos resultados das eleições presidenciais de 2019, considero que foste o candidato mais votado nas urnas. Mas a tua tomada de posse, a 27 fevereiro de 2020,  sem pergaminhos institucionais e democráticos, começou logo a dar um lamiré do que infelizmente iria ser o teu mandato. A tua primeira decisão foi demitir o governo de então, sem contudo convidar a coligação que detinha a maioria absoluta no parlamento a propor um nome para primeiro-ministro. As regras do jogo democrático estavam, outra vez, viciadas. Os partidos que formavam o “clube de feiticeiros” para a tua eleição haviam “comprado” cinco deputados do PAIGC, relegando a sua aliança à minoria.

Movido pela intenção de premiar a “lealdade” e silenciar a crítica, fizeste-te rodear de um número alucinante de conselheiros especiais, sem que houvesse cabimento orçamental para fazer face aos seus salários. O teu pavor da crítica, esse elemento nutritivo da democracia, levou a que cidadãos, jornalistas e deputados fossem sistematicamente ameaçados, sequestrados e espancados por “sicários”, sem que houvesse investigação judicial. Fiel ao teu apanágio de gabarolas, qual “gatinho que quando se olha ao espelho só vê a imagem de um leão de juba farta”, nunca conseguiste sair das arruadas da campanha eleitoral, proferindo declarações mal polidas, carecendo de timbre institucional, vezes sem conta roçando o ridículo, não obstante o teu exército de conselheiros. Declarações incendiárias, com laivos de ódio, portanto, nas antípodas de quem se reclama “… o presidente da concórdia nacional”, uma expressão sloganizada que não cola com a realidade, quando és o primeiro a atiçar divisões na sociedade guineense. Ou mais ainda, “…implacável no combate à corrupção e ao tráfico de droga”, quando a corrupção é o cancro que já virou matastase e a droga é hoje vendida em mercado livre em Bissau.

O erário público está a ser delapidado sem piedade, todos assobiam para o lado, e ninguém apresenta os números do défice orçamental e da dívida pública, num país que não quer criar riqueza e confunde o desenvolvimento com o afagamento de uma artéria da capital com asfalto, uma obra banal que levaria a cabo um município num país organizado. E que engana aldeões, como fez Botche Candé, o teu fiel das trevas, com uma pequena ponte de madeira em cuja segurança o próprio não confia, porque na inauguração teve que ser segurado por dois homens para caminhar sobre a dita maravilha arquitectónica da idade da pedra.

Desdenhando o país fora de Bissau, de gente que trabalha, sem esperar por migalhas do estado, preferes Paris, Lisboa, Ankara, Dakar, Abuja, Abidjan e Kinshasa a Cuntima, Varela, São Domingos, Galomaro, Susana, Banjara, Cacheu, Cancolim, Caboxanque e Caravela. Essas localidades do país real somente visitadas, qual lua nova em terra velha, na festança eleitoral, a ocasião suprema para tu e outros pseudo-políticos fazerem juras de amor à democracia que não hesitam em espezinhar logo no rescaldo do plesbicito. Sendo o presidente de um país carente em quase tudo, lograste ser, provavelmente, o chefe de estado que mais viaja no mundo, sob o slogan de “diplomacia agressiva” que até agora só serviu para sustentar a tua luxúria e dos teus camaradas, à custo do erário público. Senão vejamos: pelas notas postas nas redes sociais, quase todas as semanas embarcas num avião para ir ao estrangeiro. Proponho-me a fazer uma estimativa nivelada por baixo. Com base nos valores constantes do Anexo ao Despacho N.77/PM/2020, de 12 de agosto de 2020, se considerarmos que por ano viajas em 40 das 52 semanas para uma estadia média de 2 dias, são 80 mil euros em ajudas de custo (1.000€ por dia) e um milhão e meio de euros por conta de despesas de representação (38.000€ por viagem), sem contar com o custo de fretamento de aviões e perdas de produtividade de militares e governantes resultantes da sua romaria ao aeroporto para o “play, sing, chat, hug, kiss & fly” e, evidentemente, o teu salário. Tanto gasto para sustentar o teu turismo diplomático, regressando à terra com as duas mãos cheias do nada!

Deste a destruir o único parque urbano da capital, situado no coração da cidade, para uma ONG islamita, instrumento de propaganda da Turquia, nele instalar uma aberração arquitectónica! E, à falta de argumentos perante críticas legítimas, escudaste-te sem sucesso atrás dos muçulmanos (esses que também já ofendeste, vezes sem conta) para atiçar uma birra religiosa.

Em mais um piscar do olho à classe castrense, o teu pé de apoio para consolidar a ditatura na Guiné, tiveste a ousadia de mudar a data da comemoração da independência de 24 de setembro para 16 de novembro (dia das forças armadas), facto único no mundo, com o argumento esfarrapado de que em novembro não chove, e assim, podes convidar muitos chefes de estado estrangeiros. Mas afinal, a celebração da independência é um evento nacional ou uma montra ensolarada para o presidente?

Pouco interessado em promover políticas públicas de desenvolvimento, decidiste fazer do Sr. Botche Candé, ministro do interior, a testa de ferro para criar o Partido dos Trabalhadores da Guiné (PTG), numa tentativa de dividir (até a tua própria família política) para melhor reinar, que redundou em fracasso, porque o povo deu a maioria absoluta à coligaçao PAI nas eleições legislativas antecipdas de Junho de 2024. Essas eleições que não constavam da agenda, não fosse o teu amuo com o parlamento, que não deu anuência ao teu acordo secreto de zona de exploração conjunta com o Senegal. Mesmo assim, tentaste todos os subterfúgios para impedir essa coligação de ir a eleições, tal como comprovam o processo de impugnação forjado em nome de um militante supostamente “injustiçado; a proibição de aterragem de uma aeronave que transportava materiais de campanha; e o subsequente bloqueio de camiões, proibidos de entrar em território senegalês a partir da Gâmbia, devido a “ordens superiores”.

A TV pública tornou-se a tua máquina de propaganda, e até fomenta o islamismo radical na Guiné. Veja-se o vídeo noticioso com um suposto responsável da ONG Barriga do Povo a ameaçar expulsar das suas aldeias ancestrais os infiéis que se recusarem a converter-se ao islamismo! Já não reconheço a nossa Guiné!

No país de “ordem superiores”, até parece que existe Deus na terra. Uma imagem chocante dentro de uma mesquita simboliza bem esta constatação: ver-te sentado numa cadeira alta, enquanto todos os fiéis, incluindo o próprio imame, estavam debruçados nas esteiras, porque na casa de Deus todos são iguais.

Esfrangalhaste a justiça já de longa data agonizante no leito da morte. Expropriaste, contra a decisão judicial, o edifício-sede da ordem dos advogados, quando uma breve travessia da rua poderia, seguramente, levar à uma solução que satisfizesse ambas as partes, sem grandes alaridos. Nomeaste Procurador-Geral da República um indivíduo no mínimo incompetente, sem crédito entre os seus pares, para fazer “justiça” segundo os teus mandamentos: neutralizar opositores e instalar o poder absoluto. Esse mesmo indivíduo, Bacari Biai, assim como o Botche Candé, ministro do interior, foram acusados, num áudio posto a circular nas redes sociais em outubro de 2022, por altos responsáveis do Ministério do Interior e da Polícia Judiciária, de estarem directamente envolvidos no desaparecimento de meia tonelada de droga apreendida e de meio milhão de euros de pagamento pelo cartel para libertar o seu operacional. Demitiste o procurador, para o proteger e transferiste o Botche Candé para o discreto Ministério da Agricutura, e o dossiê foi fechado à sete chaves.

No rescaldo do plebiscito com resultado amargo, recebeste o ex-primeiro-ministro e ex-ministros desempregados de braços abertos na presidência como conselheiros especiais, com alguns beneficiando de mordomias princepescas, e te prontificaste a nomear (novamente) o senhor Bacari Biai Procurador-Geral da República para fazer a tua justiça suja de neutralisar adversários políticos e acelerar a implantação da tirania na Guiné.

Em outubro do mesmo ano, orquestraste uma insurreição no Supremo Tribunal de Justiça, a mais alta instância jurisdicional do país, para suspender o seu presidente, José Pedro Sambú, provavelmente porque terá tido a coragem de desobedecer às tuas “ordens superiores”, tendo viabilizado, no quadro das leis da república, a candidatura da coligação partidária que viria a ganhar as eleições legislativas com maioria absoluta. Como o teu primeiro intento fracassou, decidiste então recorrer à artilharia pesada: enviaste um grupo de homens armadados à sua residência para o impedir de sair da sua casa para ir ao serviço, tendo um outro grupo bloqueado o acesso às instalações da alta corte. Impotente face à força das armas, a Pedro Sambú não restou outra alternativa que não renunciar ao mandato. Com esse pilar fundamental do estado de direito democrático sem condições para funcionar, estava assim montada a operação “Exterminar a democracia”. Sem nenhum fundamento, em dezembro de 2024, emites um decreto presidencial de valor jurídico nulo que dissolve o parlamento. O legislador não podia ser mais claro na redacção do artigo 94° da Constituição: “A Assembleia Nacional Popular não pode ser dissolvida nos 12 meses posteriores à eleição, …”.

Em seguida, foste a Paris receber “palmadinhas” nas costas, antes de ires esfregar as mãos de contente com os teus homólogos em cimeira sub-regional. E a CEDEAO, em mais um acto que envergonha o homem africano,  provou não ter vocação para resolver o mais simples dos problemas dos povos da África Ocidental. A seu tempo,  a Guiné-Bissau deverá apresentar uma proposta para a criação de uma nova organização sub-regional, com presidência rotativa, o que implicará a extinção imediata da CEDEAO. Caso contrário, o nosso país irá abandonar essa organização moribunda que, à revelia dos seus ideais fundadores, transformou-se num clube neocolonial, frequentado por saqueadores de legitimidade popular nas urnas para prestar vassalagem à metrópole das luzes, a única instância a que devem obediência.

Mas de tantos males que já infligiste ao país, o mais grave é a profanação da imagem de Amílcar Cabral, um golpe à nossa nacionalidade e identidade enquanto povo. Nem Nino, o teu ídolo declarado, de quem ambicionas ser a pior reencarnação, se permitiu a tais desvarios. Antes pelo contrário, honrou sem espinhas a memória do pai fundador. O meu professor em Coimbra dizia que “a história não serve para nada, mas quem não conhece a história, não percebe nada”. Quando insultas Cabral, estás a insultar todos os guineenses, cabo-verdianos e africanos, sem mencionar os seus admiradores dos quatro cantos do mundo. Amílcar Cabral, talvez não saibas, é o autor do hino nacional “Esta é a Nossa Pátria Amada”, entoado nas cerimónias oficiais e nas tuas visitas oficiais. Cabral é considerado por historiadores de renome o segundo maior líder mundial de sempre, à frente de figuras como Winston Churchill e Abraham Lincoln. Se Cabral não tivesse sido assassinado, os ventos da paz soprariam de Cabo a Tunis e as plantas do progresso estariam a brotar de Mogadíscio a Dakar.

Este ano, em mais um gesto de menosprezo à nossa memória colectiva, viajaste para o estrangeiro quando deverias estar no país para depositar coroas de flores em memória dos heróis nacionais no dia 20 de janeiro de 2024. Mas o pior foi teres dado “ordens superiores” para não permitir que a filha de Amílcar Cabral, assassinado no dia 20 de Janeiro de 1973, pudesse depositar coroas de flores na campa do seu progenitor, e dez dias depois, mandar barrar acesso à campa da sua mãe à filha de Titina Silá, morta no dia 30 de Janeiro do mesmo ano quando se deslocava para assistir ao funeral do pai fundador! Mas que maldade!!

Como vês, banalizaste o estatuto de presidente que confundes com poder absoluto “na manda fitchal” (vou pô-lo na prisão!), desrespeitando as instituições da república, sob o amparo das chefias militares?! Reduziste a democracia à míngua. Esssa democracia inocente que conseguiste ludibriar, porque ela é plural, transparente e inclusiva. Tudo isto leva-me a questionar o teu apego à pátria, porquanto das tuas acções, cegamente seguidas pelos teus correligionários, num emaranhado do joio onde o carácter é um raro grão de trigo, só consigo vislumbrar ofícios de um digno representante de interesses estrangeiros obscuros, num sinistro paralelo com a quinta coluna espanhola durante a ditadura de Franco. Quando uma organização de comerciantes estrangeiros, na que deveria ser uma trivial visita de cortesia, exprime o seu pleno apoio às tuas des(políticas) contra o povo que te elegeu; quando te regozijas de ceder ao desbarato os nossos recursos naturais; quando cedes o único parque urbano do país a uma organização ideologicamente próxima dos talibãs; quando declaras que o proprietário de um avião que aterrou misteriosamente em Bissau em outubro de 2021 (e ainda lá se encontra a apanhar pó!) seria provavelmente alguém mais sério do que tu, então algo vai mal, muito mal na terra de Cabral, forjada no carácter e na dignidade. Mais: não enxergo em ti nenhuma vocação para o progresso. Em ti, só vejo um exímio esbanjador de oportunidades e um cruel reversor de trinta anos de ganhos democráticos.

A democracia é aceitar o contraditório, a crítica e o crivo da lei. Quem não aceita ser criticado, não tem lugar na democracia. Durante estes quatro anos, cometeste tantos atropelos à carta magna e causaste tantos males ao povo da Guiné que sinto-me compelido a exigir-te que renuncies ao cargo de Presidente da República da Guiné-Bissau. Não queremos que continues  a estragar o nosso país. A Guiné-Bissau não é o teu rancho! Entrega-no-lo de volta, a fim de construirmos um “terra omi nobu” (um país novo), com a refundação e consolidação das instituições, condição sine qua non para cumprir o programa maior – o desenvolvimento – para que possamos finalmente limpar as lágrimas de “mindjeris di pano preto” (mães e esposas enlutadas) e ver florir as plantas de setembro.

Se não o fizeres (o que é teu pleno direito) e estás genuinamente interessado em fazer algo de positivo neste último ano do teu mandato, isto é, deixar respirar a democracia, então ouve os conselhos da tia Ana, procedendo assim:

  • Dá “ordens superiores” para que o Supremo Tribunal de Justiça volte à situação de funcionamento anterior à renúncia forçada do seu presidente;
  • Dá as tuas últimas “ordens superiores” para que as forças de segurança de bloqueio à democracia se retirem imediatemente das instalações da Assembleia Nacional Popular, deixando os eleitos do povo retomarem o exercício pleno do seu mandato legitimado nas urnas;
  • Convida a coligação PAI – Terra Ranka a apresentar um nome para primeiro-ministro. Sim, o povo deu-lhe inequivocamente o mandato para governar durante quatro anos, tal como o tinha dado a ti para presidires a nação por cinco anos;
  • Demite o Procurador-Geral da República e nomeia alguém que, além de ser tecnicamente competente, é idónea ética e moralmente;
  • Convoca os partidos com assento parlamentar para auscultação, antes de marcares a data das próximas eleições presidenciais na primeira quinzena de novembro de 2024, para que uma eventual segunda volta se possa realizar antes da quadra natalícia e, assim, assegurar tempo suficiente para os trâmites legais e a tomada de posse do presidente (re)eleito no dia 27 de Fevereiro de 2025.

Se o fizeres, poderás eventualmente ser perdoado de todo o mal que fizeste. Do contrário, lembra-te das façanhas do Amadu: conseguiu derrubar um gigantesco poilão, sem precisar da ajuda do vento que neste momento sopra bem forte na África Ocidental. As forças armadas que esclareçam, na pessoa do seu chefe de estado-maior, se estão em conluio contigo ou têm um pacto republicano com o povo. Um dia, terá que haver o momento zero para a justiça na Guiné, onde todos os crimes serão julgados, mesmo que logo depois, alguns condenados possam beneficiar de indulto.