A ofensiva ucraniana do início de Agosto na região de Kursk, ofensiva que continua há quase um mês, lançou confusão e choque entre os responsáveis políticos e militares russos. Mas ao mesmo tempo que parecem incapazes de parar a ofensiva ucraniana no seu território, os russos foram progredindo na Ucrânia Oriental, na região do Donetsk, pondo em risco a estratégica cidade de Pokrovsk.

Os combates continuam, e nesta circunstância parece interessante lembrar essa outra batalha de Kursk que, há 81 anos, no Verão de 1943, no chamado “Saliente de Kursk”, foi decisiva para o desfecho da II Guerra Mundial. E que foi também a maior batalha de blindados da História.

Recordemos a situação: no Inverno de 1942-43, as tropas alemãs na Frente Leste tinham conhecido a derrota e humilhação de Estalinegrado, com a rendição do Sexto Exército de von Paulus. Hitler, responsável pela estratégia e decisão da campanha, na medida em que ditara especificamente as instruções aos seus generais, ficara abalado pela derrota, como documentam as memórias de alguns dos colaboradores que o visitaram então nos seus quartéis da Prússia Oriental.

Mas passado o degelo da Primavera russa, que tornava a guerra impraticável nas terras alagadas, alemães e russos prepararam a campanha de Verão, naquelas planícies onde se jogava, outra vez, o destino da Europa e do mundo. Os dois líderes em confronto, Estaline e Hitler, conheciam-se bem, embora nunca se tivessem cruzado presencialmente. Eram agora inimigos mortais, mas tinham sido por algum tempo , entra Agosto de 1939 e Junho de 1941, aliados objectivos; e de certo modo tinham-se avaliado e considerado como oficiais do mesmo ofício.

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Estaline, já no poder há mais tempo, seguira com muita atenção os detalhes da “Noite das Facas Longas”, em que Hitler se livrara, numas horas, de umas centenas de inimigos, da “esquerda” das SA à direita nacional conservadora e católica. Hitler seguira também com atenção as grandes Purgas estalinistas, a partir de 1937 e 1938, e o modo como nas purgas e processos de Moscovo o seu homólogo soviético eliminara cerca de um milhão de pessoas e acabara com a concorrência dos velhos bolcheviques no Comité Central. Mesmo assim, embora nesta leva fossem liquidados os principais judeus do Partido Comunista, Hitler continuaria a achar que comandavam o jogo. Como também pensava que estavam ao leme na América.

Desta visão em que o realismo geopolítico cedia à paixão ideológica, tinham vindo muitos dos erros que levariam na guerra à derrota da Alemanha. Como atacar a Rússia no Verão de 1941, com a Inglaterra, ajudada pela América, do outro lado do mar.

O Inverno de 1941 parara o Exército alemão à porta de Moscovo; a questão do combustível para uma guerra mecânica condicionara Hitler no Verão de 1942, levando-o para o Cáucaso. Agora, frente a frente, ao longo de toda a frente Oriental estavam dois exércitos gigantescos: os russos juntavam então, apesar das perdas sofridas, 6.500 000 homens; a Wehmarcht, a Ostheer, 3.100 000, 180 divisões.

Mas a grande superioridade dos soviéticos estava no material: tinham muito mais tanques, muito mais peças de artilharia, muito mais aviões de combate. Tinham e produziam nas fábricas para lá dos Montes Urais, além do que recebiam dos americanos. Parte das suas forças estavam situadas no Saliente de Kursk, num espaço de 250 Kms no sentido Norte-Sul, e 160 no sentido Este-Oeste, ou seja, no total 40.000 Km2 .

A ofensiva alemã, Unternehmen Zitadelle, foi sendo sucessivamente adiada por Hitler, pela necessidade de reforçar os meios de ataque perante as forças na defensiva. Não se pode esquecer também que, com uma guerra em outras frentes e com a “fortaleza Europa” a ser atacada pelo Mediterrâneo, impunha-se a Leste uma batalha decisiva que restaurasse o prestígio das tropas alemãs e quebrasse as forças soviéticas.

Os chefes militares na frente de Kursk eram também de peso e prestígio: Erich von Manstein e Walter Model pelos Alemães, Gyorgy Zhukov, Konstantin Rokossovsky e Ivan Konev pelos russos.

Para a batalha de Kursk, os alemães dispunham de meia centena de divisões, das quais 19 blindadas e motorizadas, com cerca de 2.700 carros de combate. Os efectivos andariam pelos 700.000 combatentes.

Os soviéticos contavam, como se disse, com mais homens (cerca de 1.400 000 no Saliente de Kursk) e, além disso, quase o dobro de blindados, e dispunham de grandes reservas. Assim, apesar de terem sofrido grandes perdas, puderam aguentar os ataques alemães e através dessas contra-ofensivas – baptizadas Kutuzov no Norte do Saliente e Rumyantsev no Sul – lograram forçar os alemães a regressar ao ponto de partida. Von Manstein pediu reforços a Hitler que, em 13 de Julho, visitou a frente. Para a reunião, Manstein exigiu a presença de estenógrafos, que registaram a conversa com o Führer.

Considerando a situação no terreno, mas também as novidades do Ocidente, onde os Anglo-Americanos tinham invadido a Sicília, Hitler decidiu parar a ofensiva.

Os russos, na contra-ofensiva, avançaram e tomaram várias cidades. Em finais de Agosto, tudo estava consumado – os alemães retiraram em profundidade e os russos avançaram. E Heinz Guderian, o grande estratega da Blitzkrieg, podia mais tarde escrever:

“Com o fracasso da Zitadelle, sofremos uma derrota decisiva. As unidades blindadas, refeitas e reequipadas com tanto esforço, tiveram perdas pesadas em homens e material e ficariam inoperacionais por muito tempo (…) A partir daqui o inimigo ficou senhor absoluto da iniciativa.”

Kursk entrou, como outras batalhas decisivas da História, naquela lista interminável de acontecimentos sobre os quais ainda hoje os historiadores militares debatem se a solução poderia ter sido outra. Do lado alemão e a partir do próprio von Manstein, a tendência é culpar Hitler pela demora a atacar – e pela pressa em ordenar a retirada.

De qualquer modo, Kursk, a outra batalha de Kursk, tem um lugar na História, não só como a maior batalha de blindados do século XX (e antes eles não existiam), como uma viragem decisiva da II Guerra Mundial. A partir dela, os alemães vão sempre a retirar e os soviéticos a avançar. Até Berlim, na Primavera de 1945.