Dizer há racismo em Portugal é o mesmo que dizer há racistas em Portugal? Gramaticalmente, racismo é uma nominalização, ou seja, um nome derivado do adjetivo racista. Daqui parece poder concluir-se que o significado das duas frases é o mesmo. Mas comunicativamente – ou seja, do ponto de vista daquilo que é dito para além do valor gramatical e semântico veiculado nas palavras – as duas frases não são equivalentes. Pode parecer que esta é uma questão diletante ou uma simples curiosidade linguística, mas não é, como vou tentar mostrar.

Lee Jasper, ex-conselheiro para a igualdade de Ken Livingstone, antigo presidente da Câmara de Londres, em entrevista à TalkRADIO, disse que o racismo é um problema no NHS (Sistema Nacional de Saúde). A entrevistadora pergunta se Lee Jasper está a dizer que o pessoal médico do NHS é racista – em particular os trabalhadores brancos (uma vez que o ex-conselheiro reconheceu que metade dos trabalhadores do NHS são negros ou de minorias étnicas) e o entrevistado apressa-se a responder que não está a dizer que eles são racistas, mas sim que há racismo no NHS.

Por cá, é difícil encontrar afirmações públicas de que há pessoas racistas em Portugal. Já a de que há – ou não há – racismo é extremamente frequente. Rui Rio diz que não há racismo; o Presidente diz que há setores racistas.

Dizer que há pessoas racistas é trivial. A força argumentativa de uma declaração destas é quase nula. Há racistas como há corruptos, burlões, obtusos e medíocres – gente de todo o tipo. Mas dizer que há racistas, ao contrário de dizer que há racismo, implica inquirir quem são essas pessoas, onde estão (em que setores estão), quantas são e quão racistas são –  sim, porque escrever “H é a Helena, é preta, diz que é morena”  num livro infantil, como fez Luísa Ducla Soares, e ser considerada uma pessoa racista difere muito de um branco espancar um negro na rua e ser acusado de racista. Ou seja, reconhecer que há racistas em Portugal implica olhar para as pessoas como indivíduos, cada um respondendo pelas suas ações individuais – quer criminalmente quer socialmente. E requer também apurar se as suas ações tiveram repercussões no estatuto social e profissional das pessoas que sofreram esses atos racistas. Porque, afinal, o que se quer é eliminar injustiças cometidas com base na raça. É esse o problema social que se quer tratar.

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Tudo muda, no entanto, se nas formulações que são utilizadas predominar a palavra racismo. O racismo englobará, seguramente, o facto de haver pessoas racistas em Portugal. Daqui decorre, porém, que é possível afirmar que há racismo se houver 10 milhões de pessoas a cometer atos racistas como também há racismo se houver 10 dezenas delas. Como nunca será possível erradicar na totalidade os cidadãos racistas de uma nação – talvez apenas num sistema totalitário isso fosse possível, em que todos os racistas poderiam ser silenciados (nos vários sentidos mais ou menos eufemísticos da palavra) – sempre que houver racistas há racismo.

Mas, dizer que há racismo vai muito para além de dizer que há atos racistas cometidos por pessoas racistas. Posso efetivamente dizer que “O racismo é praticado por X, Y, Z”, o que equivale diretamente a dizer que “X, Y e Z são racistas”, mas posso usar a palavra racismo também em frases como “O racismo manifesta-se em…”, “O racismo está patente em…”. Só assim é possível afirmar, por exemplo, que o racismo se manifesta na língua portuguesa, em expressões como “negra vida”, “negra sina”, sem ao mesmo tempo dizer que as pessoas que as usam são racistas; só assim se pode afirmar que há racismo nos manuais de História, por só mencionarem o continente africano no contexto do esclavagismo ou da fome, sem afirmar que os autores desses manuais são racistas; só assim é possível afirmar que o racismo é um reflexo de um passado colonial sem que isso implique dizer que todas as pessoas de uma ex-potência colonial são racistas; só assim se pode dizer que a ausência de cidadãos de minorias étnicas a ocupar posições de topo na sociedade é a prova de que há racismo, sem ter que rastrear onde é que o percurso de vida dos cidadãos dessas minorias foi afetado por atos racistas. Isto porque racismo, ao contrário de pessoas racistas, é ubíquo, difuso no tempo, eterno.

As pessoas e os seus atos racistas podem ser quantificados e medidas as suas consequências através de um trabalho de levantamento de dados para se chegar a um retrato da realidade. O racismo não precisa de inquirições, nem de dados empíricos. O racismo é uma certeza porque é uma mentalidade ou um quadro subliminar. É só preciso olhar com atenção para o que está à nossa volta que logo despontarão situações que podem, de diferentes formas, confirmar a sua existência. Por exemplo, as estátuas.