José Pinto-Coelho, dirigente do ERGUE-TE (anteriormente PNR) desde 2005, e Rui Fonseca e Castro, líder do movimento Habeas Corpus e candidato pelo ERGUE-TE às eleições europeias de 2024, já concorreram ao todo a sete eleições legislativas e a umas europeias. Somando os votos reunidos nestes últimos dezanove anos (102.949), ainda assim têm menos 23.136 votos dos que o PAN precisou para eleger a sua deputada única nas últimas legislativas (126.085). A manter-se a tendência das últimas eleições e imaginando que iremos a votos de três em três anos (foi essa a média desde 2005), o partido conseguirá finalmente acumular 126 mil votos (ao todo, não numas eleições) em 2035, portanto, trinta anos e onze eleições depois da nomeação de José Pinto-Coelho para dirigente do partido. O seu insucesso democrático, na cabeça destes senhores, prova apenas a falência da democracia, tal como a minha inaptidão para os afundanços me prova uma e outra vez a estupidez do basquetebol.

Apesar de tudo isto, o partido e o movimento têm conquistado ao longo dos últimos meses um espaço mediático desproporcional ao apreço que os portugueses manifestam pelas suas, chamemos-lhes assim para simplificar o argumento, ideias. Tudo isto porque (em defesa das crianças inocentes cujos pais são estúpidos demais para as proteger e que por isso precisam de uma nova cruzada em seu nome, liderada por um bando de cavaleiros de cabeça rapada) decidiram encetar iniciativas de protesto contra o lançamento de livros que promovam «a homossexualidade infantil e a pornografia», ou, melhor dizendo, que discutam questões de género ou apresentem nas suas páginas famílias não heterossexuais. Desde Junho, foram noticiadas três iniciativas deste tipo, nas apresentações dos livros de Sara Dias Oliveira, Mariana Jones e Ana Rita Almeida, este último em Idanha-a-Nova, a vila albicastrense onde, como se sabe, fica a sede do grupo Bilderberg. Feitas as contas, talvez cause algum espanto pensar que em quatro meses, num país onde se publicam cerca de dois livros por hora, estes senhores, que não parecem extraordinariamente ocupados e em quem confiámos a segurança das nossas crianças, tenham encontrado apenas três livros inaceitáveis.

Esgotada esta mina, anunciaram então que invadiriam a apresentação de um livro sobre colonialismo, entretanto cancelada, em grande medida por o evento contar com uma conferência da ex-deputada Joacine Katar Moreira, que, nas palavras de José Pinto-Coelho «há muito devia ter sido deportada» para «ir cuidar da sua terra».

Não querendo atribuir uma excessiva sofisticação intelectual aos dois movimentos, parece-me que tanto o ERGUE-TE como o Habeas Corpus saberão os efeitos que acções deste tipo produzem.

Nos Estados Unidos, chamam-lhe Barbra Streisand Effect, um nome que deriva dos esforços dos advogados da cantora e actriz para apagar da internet as fotografias da sua casa em Malibu, que resultaram, claro, numa amplíssima divulgação dessas imagens até aí obscuras. O mesmo aconteceu, por exemplo, com um vídeo de Tom Cruise a promover a Igreja da Cientologia e o mesmo acontece, como bem sabemos, com a bolinha vermelha ao canto dos filmes ou os Parental Advisory Explicit Content que abundam na contracapa dos álbuns de hip-hop e que, mais do que alertarem os pais para a obscenidade neles contida, serviam de isco para atrair os filhos a comprá-los clandestinamente, quando ainda se compravam discos e filmes.

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No que toca aos livros, os números são reveladores. Segundo dados do jornal estadunidense The Hill, em 2022, o livro mais contestado do ano nos Estados Unidos, Gender Queer, teve na sequência dessas polémicas um aumento de 130% nas vendas. A série de banda-desenhada Maus, publicada em 1991, teve um aumento de 50% nas vendas em apenas alguns dias depois de ser banido de uma escola no Tennessee. O livro Antirracist Baby teve um aumento de 5.000% nas vendas depois de o senador Ted Cruz o criticar numa audição a um juiz candidato ao Supremo Tribunal. E depois de a editora Dr. Seuss Enterprises anunciar que retiraria seis livros do seu catálogo por conteúdo indevido, as vendas desses mesmos livros aumentaram em seis milhões de exemplares.

Dado o tremendo apoio popular ao ERGUE-TE que, como vimos, os resultados eleitorais bem expressam, parece-me impossível que estes senhores acreditem que o efeito destas acções seria outro que não o de promover os livros visados, funcionando literalmente como um movimento clandestino de marketing de guerrilha.

Importa então compreender os motivos que levam a estas acções.

Parece-me que a hipótese mais forte é a seguinte: durante muitos anos, a estratégia de persuasão política em Portugal passava por convencer os eleitores de que os candidatos falavam com eloquência de assuntos que os eleitores desconheciam em absoluto, delegando nesses representantes a sua confiança para que os resolvessem. O candidato mais forte era o que parecesse saber mais acerca do défice, de restruturações financeiras e dos juros da dívida pública, sendo o voto mais um salto de fé do que uma convicção intelectual. Hoje, as coisas mudaram radicalmente. Um político que fale de coisas que o eleitorado não compreenda pertence às elites malandras e o nosso voto irá antes para o candidato que falar de forma mais familiar e descomplicada acerca de assuntos controversos e aparentemente simples (casas de banho mistas, atletas transsexuais, emigração). Se dúvidas houvesse acerca disto, para as dissiparmos bastaria ouvir as mais recentes declarações de Elon Musk, onde o dono da SpaceX e do X sugere a eliminação de agências federais, argumentando que muitas delas são desconhecidas do grande público, seguindo a lógica de que só precisamos das coisas que compreendemos, o que, no meu caso específico, me obrigaria a viver sem electricidade.

É certo que a discussão política sempre se alimentou de polémicas estéreis, mas este ambiente cultural, em parte promovido pelas redes sociais, leva a que assuntos marginais ganhem um peso que a sua relevância para o quotidiano dos cidadãos comuns certamente não justificaria. Em Portugal, nunca houve sequer vestígios do movimento #MeToo. Em Portugal, não consigo pensar em ninguém que tenha sido cancelado por alguma coisa que tenha dito ou feito. Em Portugal, não houve um único livro censurado. Em Portugal, a linguagem neutra ou inclusiva existe apenas no Instagram ou nos artigos de um ou dois cronistas, escolhidos não segundo o seu mérito mas precisamente para gerar interacções e polémicas nas redes.

Ainda assim, quem lesse as opiniões publicadas em jornais ou percorresse o meu mural do Facebook imaginaria que existe uma horda de visigodos alinhada na fronteira, a afiar facas e a acender tochas. Aliás, um bom exemplo disso mesmo será com certeza este artigo, que só por ter a palavra woke no título terá certamente muitíssimos mais leitores do que os cinco ou seis que costumam seguir os meus textos onde escrevo sobre literatura e outras coisas desinteressantes.

Serve isto tudo, parece-me, um único propósito: ao aumentarmos o exército inimigo, justificamos a urgência de reforçar as nossas defesas, o que, claro, promoverá os partidos que fazem bandeira da luta contra moinhos de vento. Ao inflacionarmos a importância do movimento woke e a quantidade de pornografia a que as pobres crianças de Idanha-a-Nova se vêem submetidas, imploramos pela vinda de um venturoso salvador que, surgido de entre a neblina provocada pela espuma dos dias e o fumo dos autocarros ardidos, nos venha salvar desta rascaria toda.