Texto originalmente publicado pelo portal dos Jesuítas em Portugal, Ponto SJ.
Os resultados das últimas eleições europeias revelaram uma surpresa que, afinal, o é apenas na aparência: o PAN substituiu o PDR como o outsider no contexto do leque tradicional de partidos portugueses representados no Parlamento Europeu. Independentemente do peso que o voto de protesto e o avanço do abstencionismo tenham nestes fenómenos eleitorais, é evidente a importância do carisma nos media e dos trending topics das redes sociais na valorização de partidos mais ou menos anti-sistema, ou com preocupações específicas. Contudo, é também indiscutível a efemeridade destas figuras e movimentos, mesmo quando o tema é candente e inescapável. De facto, apesar de a corrupção ocupar como nunca o prime-time, o abrasivo Dr. Marinho e Pinto deixou de ser visto como porta-voz por excelência da indignação cívica; e se as notícias sobre as mudanças climáticas são mais do que nunca insistentes, tal como a sua verificação diária por cada um de nós, os protagonistas do combate ecológico e político têm variado.
Ao contrário do PDR, o PAN – Partido das Pessoas, dos Animais e da Natureza – não se notabiliza pelo carisma dos seus dirigentes e candidatos, mas antes por um conjunto de ideias e sound bites sobre os direitos humanos e sociais, a saúde e alimentação e a protecção ambiental que em geral o aproximam da esquerda mais fracturante. Questões como a defesa da homeopatia mostram o quanto o PAN acompanha pontos de vista que as redes sociais transformaram em trends por vezes tão fervorosos quanto carentes de fundamento. Neste âmbito, com efeito, deparamo-nos com um cenário típico das fake-news: por uma perversa realização do velho ditado verba volant, scripta manent, muitos são levados a aceitar falácias, meias-verdades e mentiras como verdades absolutas e indícios de um progressismo inovador. Os resultados da investigação científica são anacronicamente postos em causa em favor do que soa melhor aos medos e preconceitos anti-sistema.
No contexto da Assembleia da República, onde está representado desde 2015, o PAN dedica parte considerável da sua actividade legislativa à defesa dos direitos dos animais, quase sempre em consonância com o Bloco de Esquerda. Contudo, projectos de lei como o recentemente reprovado sobre a proibição da caça de raposas e saca-rabos – que desvaloriza o desequilíbrio resultante do excesso de predadores em favor da protecção absoluta dessas espécies – exemplificam o choque frequente de tais iniciativas com o modo de viver das comunidades rurais. Por isso mesmo, o PCP, bastião da esquerda tradicional, imputa ao recém-chegado uma visão ignorante e redutora típica de quem nunca ultrapassou as fronteiras do betão urbano.
A desvalorização do Homem – insistentemente definido como um intruso, destruidor do equilíbrio natural – face aos restantes seres vivos parece assim apontar para uma inversão do paradigma antropocêntrico que caracteriza o pensamento humano há milhares de anos. Na verdade, a relação do ser humano com a natureza foi tema de discussão desde os princípios da humanidade e muitas das alegadas inovações das vanguardas dos ambientalistas e vegetarianos remontam aos filósofos pré-socráticos. Do mesmo modo, é na Antiguidade greco-latina que se encontra a génese do protagonismo que redundou, com o desenvolvimento da tecnologia e o excesso populacional, na capacidade de alterar os ecossistemas e perigar a viabilidade do planeta que caracteriza o tempo em que vivemos, por muitos denominado Antropoceno.
Um aspecto salta desde logo à vista quando se analisa o percurso da relação homem-animal: quanto mais próximo o contacto, maior o reconhecimento dos traços comuns. Na civilização ocidental essa consciência de partilha e semelhança é patente logo nos poemas homéricos, celebrados, entre outras coisas, pelas lágrimas de Ulisses perante a fidelidade do seu velho cão Argos, e pelas longas comparações reveladoras de uma observação cuidada do comportamento do Outro-animal, unido ao homem na frágil mortalidade, que separa ambos dos deuses. Com Hesíodo surge a questão da diferença moral: os animais não tinham recebido dos deuses a capacidade de distinguir o Bem do Mal, perspectiva que abre a via da afirmação da sua inferioridade intelectual e emocional. Os primeiros filósofos, designados colectivamente como Pré-socráticos apesar do pouco que se sabe do seu pensamento, não se dedicaram ao estudo da biologia animal, mas estabeleceram os tópicos fundamentais do eterno debate Homem-Animal: se os animais partilham o uso da razão com os humanos e como ele se manifesta no seu comportamento; se partilham a alma e de que tipo; se os animais são capazes de emoções, e se os humanos têm obrigações morais em relação aos outros seres vivos, seja por estes terem uso da razão ou por outras considerações moralmente relevantes. Empédocles de Agrigento terá mesmo sublinhado as consequências de humanos e animais partilharem os mesmos elementos vitais: o consumo de carne deveria ser evitado pois configurava canibalismo; todas as criaturas possuem algum tipo de inteligência, o que torna injusto o sofrimento imposto pelos homens aos outros seres vivos. Tais ideias seguem as de Pitágoras, o mais famoso defensor dos animais da Antiguidade, percursor do vegetarianismo decerto sobretudo pela crença na metempsicose.
A época clássica, graças ao papel central assumido pela Pólis, assiste a um afastamento cada vez maior entre humanos e animais, paralelo a uma ênfase crescente na superioridade da razão. As consequências começam a notar-se com os Sofistas e, por entre a ambiguidade de figuras como Platão, acentuam-se com Aristóteles. O Estagirita inovou com um enfoque na biologia, que o distingue dos outros filósofos, e, mesmo evitando tirar conclusões morais nesse âmbito, conferiu bases “científicas” à superioridade intelectual humana. Foi o Estoicismo que explorou as consequências destas observações: não existe um parentesco real (oikeiosis) entre os humanos e os animais, pois estes carecem de razão e de emoção; assim, não há dever de justiça em relação aos animais. Contudo, estoicos como o famoso Séneca, o Jovem, reconheciam a superioridade dos animais na capacidade de viverem sempre de acordo com a natureza, enquanto a paixão pelo luxo assoberbava os humanos. A experiência vegetariana a que se dedicou por um ano foi-lhe aconselhada por um mestre peripatético, mas acabou abandonada por receio de dar nas vistas ao parecer membro de uma seita perigosa. As teses estoicas sobre a inferioridade dos animais foram mantidas por filósofos mais tardios, como Epicteto, e tiveram um impacto profundo no Cristianismo. Por seu lado, o Epicurismo não se afastou da tese da inferioridade dos animais, embora o poeta romano Lucrécio defendesse que eles possuem capacidades notáveis, como sonhar sobre algo que os impressionou.
É, porém, numa fase de grande importância do Estoicismo (sécs. I-II) que aparece um dos mais avançados defensores dos direitos dos animais: o platónico Plutarco de Queroneia, para muitos o educador da Europa. Famoso sobretudo pelas biografias das Vidas paralelas e numerosos tratados morais, Plutarco dedicou três obras à temática dos animais: Sobre a inteligência dos animais, em que ataca os estoicos, defendendo que todos os seres vivos dispõem de algum tipo de inteligência; Sobre a ingestão de carne, onde faz a apologia da abstinência; e Se os animais são racionais (Gryllus), uma paródia da transformação dos marinheiros de Ulisses em porcos. O tratado plutarquiano sobre o vegetarianismo chegou-nos incompleto, ao contrário da obra Sobre a abstinência de carne animal de Porfírio de Tiro, um filósofo neoplatónico (sécs. III-IV) que aprofundou a ideia, algo paradoxal no seu antropocentrismo, de que o vegetarianismo contribui para a pureza do corpo e do espírito.
Plutarco e Porfírio, como num fechar de ciclo, fazem reviver e desenvolvem, em pleno império romano, as ideias que tinham inaugurado a filosofia grega. Contudo, nem se atêm a superficialidades, nem subordinam o ser humano ao animal, antes procurando aprofundar a sabedoria individual e colectiva. Passados vários milénios, o que mudou? Acima de tudo, e em paralelo com a insustentável pegada ecológica da humanidade, as conquistas da ciência, agora muito mais fundamentada e esclarecida. Porém, nem ela consegue evitar a insistência anacrónica em ideias miríficas, sustentadas por um afastamento do contacto concreto com a Natureza típico da centralização urbana que vivemos e, em última análise, pelo hedonismo do primeiro mundo.
Membro integrado do Centro de Estudos Filosóficos e Humanísticos da Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa