Povo criador do monoteísmo e nação sem estado que resistiu durante séculos nas diásporas, ultrapassadas as provações da inquisição ou do holocausto nazi reinventou-se em Estado-Nação, em 1948, com a instituição de Israel, o seu estado territorial nacional.
Na sua caminhada milenar, a identidade judaica, depois também israelita, tem mantido como razão de existir a autorresponsabilidade pelo destino coletivo imposta na origem ancestral, o momento da submissão ao seu Deus único. Mesmo quando se foi modernizando com a passagem do tempo e, não menos, quando foi transitando para manifestações não-religiosas da vida social, intelectual, política, económica, artística, cultural, institucional, quotidiana – a tradição em causa nunca deixou de se situar nos antípodas da muitíssimo mais recente moral social soviética, tradição perfilhada pelas esquerdas, gerada desde 1917 justamente da rutura com os fundamentos religiosos da ordem social.
Ao perder a crença de serem todos filhos de um mesmo Deus, a última marginaliza a unidade do género humano mantendo sempre latente a legitimação da violência social e política, uma vez que o outro não é necessariamente concebido como igual a nós. Daí que se trate de um fenómeno de regressão moral e civilizacional que, em troca, passou a colocar no âmago do sentido da existência coletiva o princípio material que fragmentada, na génese, a ordem social entre ricos e pobres, opressores e oprimidos. Este novo sujeito moral nascido no século XX define-se por remeter para fora de si mesmo, por afastar da sua consciência, as responsabilidades pelos seus falhanços submetido que vive ao primado moral da vitimização.
Considerando que os meta-paradigmas em causa materializam-se em estados territoriais com existências concretas, num extremo situa-se Israel e no extremo oposto a URSS/Rússia, os povos fundadores dos dois grandes modelos antagónicos que determinam os destinos do mundo atual, a moral social da autorresponsabilidade (fundada numa continuidade histórica de matriz ancestral) versus a moral social da vitimização (fundada numa rutura revolucionária recente). Nesse jogo de contrários, coube ao modelo moral soviético (1917-1991) ir dissipando as dúvidas sobre as razões do falhanço de certas sociedades e ao modelo moral israelita (1948-2019) a demonstração do inverso, ambos evidências históricas consistentes de cerca de setenta anos em que uma implodiu e a outra continua a prosperar.
Se diversas sociedades são exemplos de funcionalidade por causa da sua orientação moral (Suíça, Japão, Austrália, entre outras), o processo histórico da Nação hebraica e o contexto regional onde foi instituído o seu Estado territorial valorizam-nos enquanto conjugação singular. A grande vitória de Israel é, por isso, a de ser hoje o mais sólido modelo de moral social capaz de orientar o desenvolvimento das mais variadas sociedades, muito em particular das que se debatem com a pobreza, a instabilidade social e política ou a violência armada, justamente as dominadas pela idolatria materialista marxista-leninista-maoísta.
Em 1948, o Estado israelita nasceu num contexto geográfico de pobreza de recursos naturais, uma génese bem mais desafiante do que a de muitos países asiáticos e africanos que, no mesmo ciclo histórico, foram acedendo às independências; foi instituído num contexto de hostilidades crescentes vindas do mundo árabe, depois reconvertidas numa guerra continuada; assim como acabou por ser um Estado acossado por pressões internacionais hostis lideradas pelas esquerdas.
No âmago das respostas a tais desafios, a moral social israelita de autorresponsabilidade pelo destino coletivo foi sempre provando ser capaz de gerar e manter, a cada nova geração, características civilizacionais que definem a nobreza das nações: um poder tutelar do Estado territorial que preserva a identidade do seu povo, ao mesmo tempo que garante a sua segurança; uma sociedade aberta que se autogoverna por uma democracia consolidada, ambas com capacidade de integrarem segmentos árabes, e como nem a abertura à diversidade nem a democracia estavam inscritas na matriz identitária originária dos judeus, os israelitas demonstram possuir uma identidade tão moralmente conservadora quanto socialmente dinâmica que, ao mesmo tempo, soube apropriar-se do muito que recebeu dos outros povos ao longo de séculos, além do que deu, em particular dos povos ocidentais; e um país capaz de gerar prosperidade económica em renovação continuada que assegura a qualidade de vida dos seus cidadãos.
Apesar dos erros, problemas e desafios passados, presentes e futuros próprios de qualquer país, Israel resiste na prosperidade enfrentando uma guerra persistente que torna improvável erradicar abusos e crimes pontuais. Porém, o seu estado de direito não fecha os olhos a tais ocorrências, muito menos a sua democracia legitima o apagamento da consciência social dos diversos traumas sociais.
Compreender Israel obriga, desse modo, a nunca omitir que do outro lado domina uma moral social de natureza distinta, a do mundo árabe a que se filiam os palestinianos. Na guerra que é a mãe das guerras por confrontar orientações morais, humanas e civilizacionais distintas, nos últimos nunca foram salientes remorsos ou arrependimentos, por exemplo, face ao desaparecimento das comunidades judaica e cristã das suas sociedades islâmicas. Por trocar o primado da autorresponsabilidade pelo da vitimização, a moral social de matriz árabe não consegue gerar pressões sociais endógenas eficazes contra a banalização da violência – armada, não-armada, física, psicológica, quotidiana –, tradição sintomática entre os palestinianos que, além das manifestações que atentam contra determinados segmentos (mulheres, homossexuais, minorias étnicas ou religiosas), legitima o ataque a civis israelitas, os últimos submetidos a um estado de direito que lhes interdita respostas equiparáveis.
Não se pode exigir mais à ordem moral coletiva de um povo que alcançou e mantém tal postura e realizações tendo em conta que os povos não existem em representações abstratas muito ao gosto de intelectuais, políticos e ativistas diletantes. Antes, os países confrontam-se com heranças históricas e circunstâncias existenciais concretas, em alguns casos dificílimas, como as que forçam amiúde a ter decidir entre matar ou morrer, sobreviver ou ser aniquilado.
Anote-se que as disfuncionalidades do Médio Oriente eram bem menos graves antes do impacto dos ideais soviéticos durante a Guerra Fria (1945-1991). Razão bastante para o substrato cultural que alimenta a violência na região ter de ser procurado em último lugar no interior da sociedade israelita. Se é legítimo falar em justiça social e histórica, mais do que filha de proclamações abstratas ou ideológicas, ela legitima-se por realizações concretas a partir do próprio exemplo do sujeito coletivo na sua própria casa, o que obriga a remeter o essencial bloqueios para o interior do mundo árabe circundante.
Descontado o fator religioso judaico que determina a moral social dos israelitas, as condições materiais e naturais não distinguiam, em 1948, Israel dos demais territórios árabes vizinhos e, se havia diferenças, os israelitas partiram em desvantagem. Setenta anos decorridos, o detalhe que diferencia a prosperidade da miséria, ou uma democracia consolidada e funcional de autoritarismos violentos ou da anarquia, é o das identidades sociais do mundo árabe da região terem investido, no mesmo ciclo histórico, na moral social de inspiração soviética da vitimização que as esterilizou e desregulou.
A atitude foi agravada porque tal influência moral externa reabriu a ferida narcísica do Islão que remonta à Baixa Idade Média em resultado das suas perdas civilizacionais sucessivas face ao Cristianismo e ao Ocidente, influência externa que colocou nessa ferida identitária a instigação da violência, marca inapagável dos ventos soviéticos. Tal sentimento de perda sustentado em razões históricas, bem mais do que religiosas, associadas à influência dos ideais de esquerda impuseram ao Islão a incapacidade de exorcizar a guerra santa, o seu ideal religioso fundador de combate aos infiéis que nesse caldo existencial acabou transformado no pretexto para as identidades islâmicas sonegarem a si mesmas o seu latente ódio ao próximo.
Enquanto esse sentimento não for exorcizado com provas dadas a partir do berço, o mundo árabe, uma possibilidade que a história sempre admitirá, a religião islâmica persistirá anacrónica no século XXI. Não foi mero acaso o terrorismo islâmico ter sido historicamente ativado após a chegada ao mundo árabe dos ideais socialistas e de esquerda, anticristãos e antiocidentais na sua génese moral marxista-leninista-maoísta.
A passagem das décadas que se sucedem ao auge da influência soviética no mundo foi transformando os povos árabes do Médio Oriente em vítimas da sua própria vitimização. São estas identidades sociais que têm de pacificar primeiro a relação consigo mesmas, o que implica que se confrontem com a natureza da sua moral social, sendo que esta deixa marcas por demais óbvias no interior do espaço de existência de cada povo. Trata-se da precondição para depois poderem pacificar a sua relação com as outras identidades sociais, à cabeça das quais a dos israelitas e como pano de fundo o mundo ocidental.
Não pressionar os povos árabes nesse sentido é continuar indiferente, no Médio Oriente, à má governação, miséria, violência e morte que alguns causam entre os seus e, por isso, tais fenómenos estão necessariamente filiados a representações sociais patológicas da condição humana. Daí que as pressões internacionais contra Israel, em muito instigadas pela aberração moral em que se transformou a ONU, mais pareçam uma parada de loucos. Contra elas é necessário impedir que se cometa a barbaridade há décadas latente de se destruir uma moral social de autorresponsabilidade que demonstra ser funcional, ao mesmo tempo que se instiga e premeia uma outra de vitimização que apenas tem dado provas de gerar sociedades mentalmente patológicas.
Adaptado do livro Um século de escombros – Pensar o futuro com os valores morais da Direita.