Imagine o leitor, provavelmente um ávido de cinema, se pudéssemos personalizar um filme baseado nos padrões de visualização, preferências e, até, uma outra particular e importante fonte de dados – as emoções experimentadas por quem o assiste. Esta integração de diferentes tipos de dados da experiência individual de quem assiste ao filme permitiria ajustar o enredo, em tempo real, garantindo a plena satisfação das expectativas (e emoções também) do público. E se aplicássemos esta ideia no campo da saúde? Imagine que as autoridades reguladoras acedem aos dados de mundo real da utilização de um dispositivo médico, permitindo aferir que são adequados às necessidades de cada doente e monitorizar a sua efetividade em perfis muito heterogéneos de pacientes. Esse é o potencial transformador da evidência de mundo real no setor da saúde.

De facto, o setor da saúde tem sofrido uma transformação significativa com a integração da evidência de mundo real no processo de tomada de decisão em saúde. A evidência de mundo real (ou, em inglês, real-world evidence) refere-se às provas científicas geradas com base em dados de mundo real (real-world data), isto é, gerando conhecimentos a partir dos cuidados de saúde e da vida diária das pessoas com doença, obtidos de várias fontes, como os registos clínicos eletrónicos, registos de doenças, wearables ou aplicações móveis, e está a transformar a forma como compreendemos a efetividade e a segurança das mais variadas intervenções clínicas.

Este interesse recente pela evidência de mundo real na saúde torna-se evidente pelo crescimento exponencial de literatura científica sobre este tema. Esta tendência crescente de publicação é, porventura, motivada pelo desenvolvimento de áreas conexas que permitem cada vez mais a digitalização e recolha de dados dos cuidados de saúde e a capacidade crescente de análise de grandes volumes de dados. De facto, a popularidade da evidência de mundo real é mais do que uma moda: é uma evolução necessária face à crescente procura de cuidados de saúde e à necessidade de soluções de cuidados mais personalizadas face à utilização real dessas tecnologias de saúde.

O sistema europeu de regulação e avaliação de medicamentos e tecnologias de saúde – isto é, o conjunto de autoridades congéneres do Infarmed de todos os países do Espaço Económico Europeu – constitui uma oportunidade de processamento de informação com escala e geração de conhecimento ímpares. A evidência do mundo real desempenha um papel crucial nos diversos processos que asseguram a qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos. Além disso, pode reforçar as decisões baseadas na efetividade durante o processo de tomada de decisão sobre a utilização e financiamento de tecnologias e intervenções em saúde.

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Tendo em conta o crescente interesse numa maior utilização de dados em saúde e a oportunidade que a transformação digital representa para o desenvolvimento e transformação da rede de regulação das tecnologias da saúde, é essencial enfrentar dois desafios principais: a criação de um ecossistema comum de dados e a capacitação da rede para a sua utilização eficaz. Por um lado, é crucial garantir o alinhamento de regras, normas, práticas e infraestruturas para o acesso aos dados. Por outro lado, é necessário estabelecer condições de interoperabilidade e eliminar redundâncias na produção, tratamento e partilha desses mesmos dados dentro da rede.

Portugal tem feito parte desta transformação intervindo e participando em diversos projetos inovadores com grande potencial transformador. Por exemplo, o projeto DARWIN EU® tem como objetivo a sistematização da utilização da evidência de mundo real, criando um catálogo de bases de dados de interesse e com qualidade para o efeito. Para este ambicioso propósito reúne um consórcio alargado, envolvendo parceiros (todas as entidades que podem disponibilizar os seus dados primários), a Agência Europeia do Medicamento (EMA) e a rede de Agências Reguladoras Nacionais, incluindo também entidades, parceiros e recursos no âmbito do Espaço Europeu de Dados de Saúde (EHDS), da Rede Europeia de Dados em Saúde (EHDEN) ou da Rede Europeia de Centros para Farmacoepidemiologia e Farmacovigilância (ENCePP). Este importante exercício multidisciplinar apresentou já Portugal como um caso de estudo, na medida em que dispõe de várias fontes e infraestruturas cujos dados são utilizados para monitorizar a utilização e eficácia em condições reais de diferentes terapêuticas. Um outro bom exemplo é o projeto Real4Reg – em que Portugal é um dos seis países envolvidos –, que tem como principal objetivo estudar a aplicação de inteligência artificial e machine learning para a utilização de dados do mundo real, mas também contribuir para a definição de métodos e normas para a tomada de decisões neste contexto. No âmbito deste projeto estão a ser desenvolvidas diversas iniciativas e abordagens como, por exemplo, a utilização de dados de mundo real para conhecer melhor as reações adversas de determinados medicamentos em contexto real da sua utilização na população.

Poder-se-á, assim, ambicionar que, também com o contributo nacional, as agências reguladoras europeias possam desenvolver, testar e aplicar novas práticas e ferramentas inovadoras no âmbito suas funções e contribuir para um melhor uso das tecnologias reguladas.

A transformação digital na regulação e avaliação de medicamentos e produtos de saúde na Europa está, assim, já em curso, sendo fator crítico de sucesso a continuidade de construção de uma visão clara para o processamento de dados, construída com todos os parceiros relevantes.

Por outro lado, numa realidade global onde a prestação de cuidados e as tecnologias de saúde são cada vez mais complexas e se tornam mais interdependentes, surge como desafio a necessidade de capacitação dos profissionais de saúde, e outros especializados, para que possam integrar com sucesso as diversas áreas do conhecimento necessárias ao sucesso desta importante transformação.

No cenário atual de inovação tecnológica disruptiva a par de uma imparável evolução do conhecimento clínico, a figura do profissional “híbrido” – com competências tanto na área clínica quanto na tecnológica e de ciência de dados – revela-se cada vez mais necessária e importante. Estes profissionais têm um papel determinante na criação de pontes entre os especialistas clínicos e os dos sistemas de informação, contribuindo, assim, para concretizar o valor potencial da transformação digital em saúde. Esta capacitação é necessária no âmbito da prestação de cuidados de saúde, mas também ao nível das entidades com atribuições na regulação em saúde. No campo particular do medicamento e dos dispositivos médicos, a contribuição de profissionais com competências intersecionais, entre a área clínica e a área tecnológica, é particularmente importante no apoio à tomada de decisão que sustente a utilização e o financiamento das tecnologias de saúde. Esta decisão baseia-se não apenas nos critérios incontornáveis de assegurar qualidade, segurança e eficácia exigidos a todos os medicamentos, mas também na verificação de critérios de eficácia comparativa, eficiência e efetividade relevantes para a racionalidade e otimização no uso dos recursos disponíveis. Assim, também as entidades reguladoras necessitam de aumentar as suas competências nestas matérias e, deste modo, estarem aptas a continuar a garantir aos cidadãos as conformidades e adequação de um cada vez mais diverso universo de dispositivos médicos avançados ou softwares para a saúde. Esta necessidade apenas se torna ainda maior quanto já hoje estamos perante avanços de ainda maior desafio no advento de utilização de ferramentas ligadas à revolução da inteligência artificial, no qual a complexidade e o impacto no setor de saúde apenas são comparáveis à necessidade extraordinariamente elevada de corresponder, assegurando respostas reguladoras igualmente poderosas.

É neste contexto que serão seguramente importantes e úteis as novas apostas em formações nestes domínios que permitam a capacitação de atuais profissionais de saúde e dos profissionais da regulação para este “novo mundo” sustentado ainda mais tecnologicamente. Contudo, serão também necessários os novos profissionais, podendo ser este o relevante contributo de novas qualificações como a oferecida pela nova licenciatura em Saúde Digital e Inovação Biomédica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – que iniciará no ano letivo de 2024/2025 –, como bom exemplo de como as instituições de ensino estão a adaptar-se a esta nova realidade. Além da abordagem específica e com um programa dedicado à tecnologia e à inovação aplicada à saúde, a oferta formativa destaca-se pelo envolvimento e parceria com as entidades do cluster da saúde, desde instituições públicas – entre as quais o Infarmed – a prestadores de cuidados de saúde, empresas da indústria farmacêutica, biotecnologia e dispositivos médicos e de associações setoriais, profissionais e de pessoas com doença.

Os desafios futuros não são triviais. A formação de profissionais híbridos na área da saúde pode ser um fator de diferenciação competitiva para Portugal, garantindo, assim, que o país está na vanguarda da aplicação da inovação em saúde, utilizando os dados de forma estratégica e responsável para melhorar a qualidade de vida dos seus cidadãos. É uma jornada desafiadora, mas, sem dúvida, recompensadora.