Se há coisas que não faltam na bimilenária História da Igreja Católica são lendas negras: as cruzadas, a Inquisição, a expulsão dos judeus, o caso Galileu, Pio XII, etc.
A receita para cozinhar uma lenda negra é simples: parte-se de um episódio verdadeiro, descasca-se o seu contexto, retiram-se os aspectos positivos, apimenta-se com uma dose de ódio q.b. e o pratinho está pronto para ser servido à opinião pública!
Não se responde às lendas negras com o branqueamento da História, mas com os factos que contradizem os preconceitos originados pela má-fé e, sobretudo, pela falta de conhecimento. O pior inimigo da fé cristã não é a ciência, mas a ignorância: os homens, como os peixes, pescam-se pela cabeça.
Uma lenda negra recorrente é a Inquisição, não porque não tenha existido, mas porque é apresentada de uma forma distorcida. Por exemplo, os inquisidores, embora sentenciassem penas graves, como a capital, também absolviam alguns arguidos e até indultavam quem já tinha sido condenado. Às vezes, as penas eram comutadas por uma razão de caridade, o que aconteceu a 3-9-1252, a Brice de Montréal, que viu substituída a sua pena de prisão por uma peregrinação à Terra Santa. Outro réu, que em 1256 tinha sido condenado a ir aos Santos Lugares, pôde, atendendo à sua idade avançada, cumprir a pena com o pagamento de uma multa. Não eram raros os indultos, cuja fórmula o inquisidor Bernardo de Gui previu no seu Manual.
Os Papas, aos quais cabe a suprema jurisdição eclesial, várias vezes anularam as sentenças da Inquisição. Bonifácio VIII revogou a condenação, por heresia, de Rainero Gatti, de Viterbo, a 13-2-1297 e, no ano seguinte, mandou restituir aos filhos de um herege, condenado pelo Santo Ofício, os bens que lhe tinham sido confiscados.
Por regra, havia humanidade no modo como as penas eram impostas pela Inquisição. Assim, por exemplo, houve cristãos detidos – só os fiéis podiam ser julgados por este tribunal da Igreja! – a quem se permitiu que fizessem férias, ausentando-se da prisão por um período de tempo determinado, com a obrigação de, expirada a licença, regressarem ao presídio, para completarem a pena. O Bispo de Carcassone autorizou uma mulher, Alazais Sicrela, a permanecer, durante sete semanas, fora do cárcere da Inquisição, sem ficar em prisão domiciliária, nem com termo de residência. Também Pagane, viúva de Pons Arnaud de Preixan, que estava presa, teve licença para gozar dois meses de férias de 15 de Junho a 15 de Agosto de 1251!
Permitiu-se igualmente que os condenados pelo tribunal da Igreja fossem dispensados, por razão de doença, do internamento penitenciário. São tantos os casos que se conhecem – só em 1250, foram excarcerados, por esta razão, Bernard Raymond, Armand Brunet, Bernard Mourgues, Arnaud Miraus e muitos outros – que se pode afirmar que não se tratava de uma excepção, mas de uma praxe habitual.
Também se conhecem histórias de condenados que foram dispensados do cárcere por razões familiares. O rigoroso juiz Bernard de Caux condenou a prisão perpétua, em 1246, um herege relapso, Bernard Sabatier mas, como o réu tinha um pai velho e doente, na própria sentença em que o condenou também o autorizou a viver com o seu progenitor, até à morte deste, para lhe dar o apoio de que necessitava.
Quer isto dizer que a Inquisição era um exemplo de humanidade e não houve excessos na aplicação da justiça eclesiástica? Claro que não: certamente que houve abusos e a própria prática da tortura, como meio processual para a confissão do arguido, que tem a sua origem no direito romano, é abominável. Os inquisidores eram, como todos os homens, pessoas capazes do bem e do mal. Houve, com certeza, juízes do tribunal do Santo Ofício que foram rectos e justos na aplicação da lei eclesiástica então vigente, como também os houve que se excederam, sendo responsáveis por abusos deploráveis, que não podem ser justificados, nem esquecidos. Mas a Inquisição não só foi melhor do que os estabelecimentos prisionais do seu tempo e posteriores – piores foram, decerto, os tormentos infligidos aos Távoras – como também era mais humana do que muitas prisões contemporâneas como, por exemplo, a de Guantánamo.
A verdade é que a Igreja exigia especial probidade aos juízes da Inquisição. Um dos mais severos inquisidores, Bernardo de Gui, traçou o seu perfil: “O inquisidor (…) permanecerá calmo, nunca cederá à cólera nem à indignação (…). Deve ser insensível aos rogos e às propostas dos que o querem aliciar; mas também não deve endurecer o seu coração, a ponto de recusar adiamentos e abrandamentos das penas, conforme as circunstâncias (…). O amor da verdade e a piedade, que devem residir no coração de um juiz, brilhem nos seus olhos, a fim de que as suas decisões jamais possam parecer ditadas pela cupidez e a crueldade”.
Como, não obstante estes critérios, alguns magistrados causaram um grave dano às vítimas e à própria Igreja, a máxima autoridade eclesial, uma vez informada desses excessos, teve que intervir. Por exemplo, em 1305, a crueldade do inquisidor de Carcassone levou os habitantes desta cidade francesa a dirigir um protesto ao Papa Clemente V que, a 13 de Março desse mesmo ano, incumbiu os Cardeais Pierre Taillefer de la Chapelle e Béranger Frédol de uma inspecção a esse tribunal, que foi feita logo em Abril desse ano. Em consequência, os carcereiros foram substituídos, foi garantido aos presos que receberiam os bens alimentares fornecidos pelos seus familiares e amigos; e melhoradas as condições sanitárias do presídio. Na prisão de Albi, mandaram tirar as correntes aos presos e abrir maiores janelas, para que entrasse mais luz e ar.
A Inquisição foi, na sua génese, uma instituição da Igreja, mas a ação dos juízes eclesiásticos reduzia-se à verificação da heresia, que requeria magistrados que fossem teólogos. Se constasse, o herege era entregue ao ‘braço secular’, que executava a pena que, nos casos mais graves, era a de morte. Portanto, não era a Inquisição que matava os hereges, mas o Estado, porque a heresia era então um crime de lesa-pátria. A Inquisição ibérica foi tão dominada pelo poder político que deixou de se chamar eclesiástica, para se intitular régia. Pombal, por exemplo, para usar e abusar deste tribunal para fins políticos, fez com que um seu irmão, Paulo de Carvalho, fosse nomeado inquisidor-mor do reino.
Não é fácil saber o número dos que foram condenados pelo tribunal do Santo Ofício e depois executados pelo Estado. Henry Kamen, da Universidade de Yale, que investigou a Inquisição espanhola, talvez a mais activa da Europa cristã, chegou à seguinte conclusão: “Podemos com toda a probabilidade aceitar a estimativa, feita com base na documentação disponível, que um máximo de três mil pessoas podem ter sofrido morte durante toda a história do tribunal” (Yale University Press, 4ª edição, 2014, p. 253). Segundo um estudo recente do Professor Agostino Borromeo, só 1,8% dos casos julgados por essa Inquisição resultaram em condenações à morte: 98,2% dos restantes foram ilibados, ou condenados a penas de prisão.
A Suíça calvinista queimou quatro mil feiticeiras e “a Alemanha protestante matou mais bruxas e bruxos que em qualquer outro lugar: cerca de 25 mil” (Zenit, 20-6-2004). As três mil condenações à morte, pela Inquisição espanhola, não podem ser menosprezadas mas, em termos numéricos, não são equiparáveis aos supliciados pela Inquisição protestante, ou aos seis milhões de mortos causados pelo nacional-socialismo alemão, ou ainda aos cem milhões de vítimas do comunismo mundial.
Resumindo e concluindo, a Inquisição católica foi um exemplo de justiça e humanidade e tudo o que dela se diz é uma falsificação histórica? Claro que não, porque muitos inocentes foram injustamente condenados, como Joana d’Arc, que a Igreja canonizou. São João Paulo II, no jubileu do ano 2000, pediu publicamente perdão pelos “erros cometidos ao serviço da verdade, por meio do uso de métodos que não têm relação com a palavra do Senhor”. Mas também é verdade que a Inquisição não é o que certa propaganda laica, de tendência liberal-maçónica ou marxista-leninista, afirma.
A Igreja, para refutar esta lenda negra, não precisa de branquear a sua História: basta que exponha, com objectividade, os factos, até porque nada lava mais branco do que a verdade. Ao contrário do que acontece com muitas ideologias políticas e outras religiões, a verdade é a essência do Cristianismo, não só porque Cristo com ela se identificou (Jo 14, 6), mas também porque ensinou que só a verdade liberta (Jo 8, 32).