Quando no início deste século perguntei a um colega que conhecia pessoalmente o banqueiro João Rendeiro, quais as condições para ser cliente do Banco Privado Português (BPP) – muito elogiosamente referenciado em toda a imprensa económica da época – lembro-me de ele me dizer que o valor mínimo para abrir uma conta de depósitos à ordem era na casa das dezenas de milhar de euros. Claro que os juros remuneratórios eram interessantes, mas apenas para quem tivesse, no mínimo, esse montante disponível.

As pessoas que puderam então investir o seu dinheiro no BPP foram muito bem remuneradas durante alguns anos, certamente como na economia informal os primeiros depositantes da célebre D. Branca também auferiram chorudos juros e, se mais tarde perderam o capital, foi porque a ganância os impediu de sair a tempo. Tal como nos casinos, é preciso saber quando parar.

Veio a crise de 2008 e a pirâmide também se inverteu na economia pretensamente regulada. Nos dias que se seguiram ao fim de semana de Setembro de 2008 em que o Lehman Brothers desabou, milhares de bancos tiveram o seu destino traçado. Uns foram salvos pelos Estados, outros abandonados à sua sorte. O BPP estava entre estes últimos. Não era a CGD ou sequer o BPN, que tinham como clientes quer a empregada de limpeza, quer o director geral duma multinacional. Aos depósitos de toda esta gente os governos tinham de acudir. O BPP era, aparentemente, um banco só de ricos.

Após vários longos julgamentos – outra constante entre nós – João Rendeiro e vários administradores foram condenados a pesadas penas de prisão efectiva. Durante todo o processo e mesmo após condenado em definitivo, João Rendeiro esteve sujeito à mesma medida de coação – termo de identidade e residência – a que seria sujeita qualquer pessoa acusada de difamar outra a quem chamou um nome feio. Mas tudo isso e a ingenuidade confrangedora (para ser suave na classificação) exibida pelos magistrados neste caso já foi abundantemente comentado.

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O que nos trás aqui é outra questão: se existia um arguido com quem uma pena negociada teria sido de grande proveito para a justiça em Portugal, essa pessoa era seguramente João Rendeiro, porque tinha muito para dar em troca. Este arguido não cometeu crimes de sangue, não traficou estupefacientes ou pessoas, nem era pedófilo. Os crimes que mais alarme social criam não lhe eram imputados. Praticou crimes patrimoniais graves e enquadráveis na moldura penal que lhe foi aplicada, mas crimes patrimoniais em todo o caso.

Tudo indica que João Rendeiro, habituado ao estilo de vida que manteve durante muitos anos, o que mais pretenderia aos 69 anos de idade seria não mudar a residência da Quinta Patino para a Serra da Carregueira. Por isso, perante tal transferência coerciva, pirou-se, ou não regressou, como quiserem designar o acto.

João Rendeiro deve sentir-se terrivelmente injustiçado. Não tanto por ser condenado, pois certamente sabe aquilo que fez, mas por ser condenado a prisão efectiva. Perguntará certamente porque ditame dos céus é que ele, logo ele, que tanta guarida deu no seu Banco a tantos ricos que obtiveram o dinheiro que lá puseram através de crimes tão ou mais perversos que aqueles que o condenaram, continuam confortavelmente na Quinta Patino e similares, e ele tinha de se mudar no resto da vida para a Carregueira?

Seguramente porque contra essas pessoas não existiram queixas, não foram objecto de denúncia ou até ele próprio João Rendeiro e o seu BPP ajudaram a “regularizar” os seus dinheiros. João Rendeiro, qual Edmond Danté, injustamente condenado, ruma à sua ilha de Monte Cristo, para não passar pelas tormentas da Carregueira.

João Rendeiro, tudo o indica, o que não queria mesmo era cumprir uma pena de prisão efectiva. Certamente trocaria pela pena suspensa ou prisão domiciliária, preciosas informações com o Ministério Público sobre os seus clientes do BPP, que só não acompanharam João Rendeiro para a Carregueira exactamente porque o MP não tem as informações que Rendeiro possui. João Rendeiro, como qualquer banqueiro de ricos, sabe a proveniência dos depósitos que o seu banco recebeu. Tanto que algum desse dinheiro, de tão escandaloso até foi recusado. Mas a maioria foi aceite. Ganância dixit.

A lei portuguesa continua a não considerar a negociação das penas, mesmo em crimes patrimoniais. É um debate complicado e há argumentos fortes em sentido favorável e desfavorável. Se não existe, não é culpa dos magistrados, pois não podem aplicar lei inexistente.

Mas este caso é paradigmático. Trocar as informações na posse João Rendeiro em troca da suspensão ou atenuação da sua pena de prisão (certamente era o que ele mais desejaria) seria uma oportunidade de ouro para trazer algumas centenas de outros “João Rendeiro” à justiça. Muitos eram antigos depositantes do BPP. Isso nem sequer foi tentado porque inexiste lei que o permita.

Na realidade o que existe é inteiramente diferente. Ao invés de punir os crimes económicos e financeiros, os sucessivos Governos têm preferido branquear esse dinheiro através dos sucessivos RERT (Regimes Excepcionais de Regularização Tributária – 2005, 2010 e 2012, nomeadamente) em que através do pagamento de uma taxa de 5% – inferior á taxa de IRS de uma empregada doméstica – esse dinheiro de off -shores pode legalmente ser branqueado em Portugal, sem cuidar de saber qualquer informação da sua proveniência. Os números rondam mil milhões de euros branqueados nesta lavandaria legal.

Talvez por ser esta a linha de política de prevenção criminal do crime económico e financeiro por todos os sucessivos governos, não existe legislação para se aproveitar uma oportunidade como a do caso de João Rendeiro.

Assim, os clientes de João Rendeiro (não serão todos, óbvio) que se enquadram no mesmo “modelo de obtenção de riqueza”, continuam alegremente despreocupados, João Rendeiro, ainda que algo apoquentado, estará algures entre Singapura e Belize e a justiça portuguesa está, como se diz, a chuchar no dedo. Brilhante.