Só em aldeias muito recônditas do país, ainda subsistem feirantes pregoeiros, que não vendem um lençol, por 100, nem por 90, nem por 80, mas por 70 euros e ainda ofereçem dois pares de cuecas e um soutien. Provavelmente este modo de vender é eficiente, pois foi frequente ouvirmos o primeiro-ministro cessante afirmar, com uma convicção que nada ficaria a dever aos pregoeiros da feira, que não aumentámos o número de cirurgias no SNS em 10%, nem em 20%, nem em 30%, mas sim em 50%; que não aumentámos a despesa no SNS de 11 mil milhões para 12, nem para 13, nem para 14, mas sim para 15 mil milhões de euros, ou seja, isso não disse, que tal significa que é absorvido pelo SNS, a quase totalidade do IRS pago anualmente pelos portugueses. Ora, apregoe-se mais ou menos números, o nível do serviço de saúde que é dado em troca dos impostos é de tal modo ineficiente que nem carece de mais explicação. Mas há que não confundir a ineficiência com a qualidade. O serviço de saúde do SNS é de qualidade, por mérito dos seus médicos e enfermeiros, quando é prestado. O problema é ter acesso em tempo útil a essa prestação.

O SNS nasceu na década de 80 do século passado e tem como louvável intenção ideológica não fazer depender do rendimento de cada um o acesso a um serviço universal de saúde tendencialmente gratuito. Substituir a caridade contingente e humilhante por uma política de redistribuição de rendimentos que permitisse a todos o acesso aos cuidados de saúde, não como esmola, mas como um direito, é hoje uma convicção tão consensual que não existe no espectro político quem o ponha em causa, pelo menos de modo claro.

Em todo o caso,  gastar o equivalente à totalidade do IRS cobrado para manter o SNS que temos indica claramente que temos crónicos e graves problemas de gestão e de esbanjamento de recursos.

Depois da bancarrota, com a recorrente incapacidade de mudar o modelo da gestão dos serviços públicos, entre os quais o da saúde, com a concomitante obrigação ter as contas do Estado certas, como agora se diz, passou a efectuar-se ou cortes directos, no caso do governo dos tempos da troïka ou por via de cativações, a inovação socialista para continuar a austeridade com outro nome.

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Um governo que insista em manter um serviço público ineficiente, deitando mais dinheiro em cima de mau dinheiro, bastando para isso cobrar mais impostos directos e indirectos (os preferidos por menos perceptiveis); um governo que teime em manter uma ficção de serviço de saúde, com o mesmo tipo de gestão hospitalar, a mesma absentista e improdutiva administração pública e o mesmo desperdício de dinheiro, recursos e meios – esse governo estará sempre no domínio da inteira irracionalidade económica.

Sendo um dado adquirido após décadas de tentativas que levar a cabo uma reforma da administração pública que a torne eficiente é uma convicção muito superior a acreditar no Pai Natal, talvez seja mais útil – de modo a que pelo menos os doentes sejam atendidos e tratados – que se satisfaçam as reivindicações salariais dos médicos e dos enfermeiros e se pague o mesmo e se ofereça as mesmas condições da concorrência privada. Nem se vislumbra como pode ser de outro modo. Adicionalmente, que se estabeleça como norma, a contratação directa com os profissionais e os hospitais se desembaracem das empresas fornecedoras de profissionais de saúde, que são um elo caro, parasitário e dispensável no sistema. No restante não tenhamos ilusões, o SNS é tão irreformável, como a administração pública no seu conjunto, de que aliás é parte integrante.  Mas, no meio de tanta irracionalidade, pelo menos, que existam médicos e enfermeiros, é uma exigência justa de todos os utentes.

O SNS permanece na sociedade em simultâneo com um número cada vez maior de unidades de saúde privadas. Portanto, está em regime de concorrência. Se os profissionais de saúde têm quem lhes ofereça melhores condições fora do SNS, porque irão permanecer nele?

Porque será que os gestores e altos quadros da CGD, o banco público, auferem vencimentos equivalentes aos da banca comercial privada? Porque estão em concorrência com estes e se não lhes pagarem de modo equivalente, em vez de gestores e directores capazes, poderão arranjar uns curiosos, que no final só darão prejuízo. As reivindicações salariais e as condições de trabalho dos pilotos de linha aérea são normalmente atendidas, porque sem eles os aviões não voam; o mesmo com os maquinistas da CP (seguramente a pior empresa do país) porque sem eles os comboios não circulam. E se não voam ou não circulam afectam todos ao mesmo tempo. Ora se a TAP não voa sem pilotos e a CP não se move sem maquinistas, como é que o SNS funciona sem médicos?

Serviços de saúde sem médicos e enfermeiros – no número necessário para atenderem os utentes- é como um exército sem soldados e reza a História, que não foram poucos os políticos e generais que gizaram grandes planos de batalha, para exércitos virtuais, pois os que tinham já não existiam. Mas continuaram a planear, tal e qual os nossos governantes. Não consta que tivessem ganho qualquer guerra.