1 Quanto à totalidade da sua obra escrita – Opera Omnia – encarregou-se de a compilar a Fundação Vaticana Joseph Ratzinger Bento XVI. O curador da edição é o cardeal Gerhard Ludwig Müller, o qual, tal como Ratzinger, experimentou as agruras do cargo de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) (de 2012-2017) e que prefaciou um dos volumes já saídos; cardeal este, que em defesa da integridade e continuidade da fé tem, aliás, mantido um papel de público relevo. Desta edição completa das obras de Joseph Ratzinger, da responsabilidade da Libreria Editrice Vaticana, estão previstos sair nada mais que dezasseis volumes, alguns destes em vários tomos.

Comecei a estar atento e a ler Ratzinger praticamente depois de ele se estrear como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (1981-2005) e indispensável braço direito de João Paulo II, ao longo de quase 25 anos. Tanto quanto me recordo, as primeiras palavras dele que li, foram as constantes do livro-entrevista de Vittorio Messori, de 1985, anteriormente referido. Aqui, nesta série de artigos, em jeito de in memoriam e com profunda gratidão, apenas posso referir algumas das obras que escreveu ou subscreveu, ou por cuja redacção foi o máximo responsável, assim como um ou outro discurso que mais impacto tiveram na compreensão da sua visão da realidade e da fé, e que formaram o meu modo de olhar o estado do mundo e da civilização em que nos situamos; e no modo como, pessoalmente, fui dizendo sim ao Credo e à doutrina da Igreja.

  1. Começo por mencionar um dos seus mais antigos e conhecidos livros, Introdução ao Cristianismo – Prelecções sobre o «Símbolo Apostólico», publicado no afamado ano de 1968, livro este, produto de umas aulas dadas no ano anterior, sobre o Credo na versão chamada Símbolo dos Apóstolos, para «ajudar a compreender de uma nova maneira a fé como possibilidade de uma verdadeira existência humana no mundo de hoje». Curiosamente, foi nas vésperas da sua eleição, em Abril de 2005, que descobri no lixo, num amontoado de livros abandonados num passeio de Lisboa, à espera da recolha da Câmara Municipal, um exemplar de uma tradução em português do Brasil (da editora Herder de São Paulo, datada de 1970). Esta coincidência do meu achado com o início do seu pontificado foi premonitória do que seria uma das suas maiores e constantes preocupações como Sucessor de Pedro: ajudar a compreender a perene fé da Igreja num formato estilístico mais adequado aos tempos, confirmando-a e sem ceder a qualquer equívoco ou traição doutrinal. Comecei então a lê-lo, mas a leitura foi mais tarde efectivamente continuada numa edição mais recente, da Princípia (2005), adaptado ao nosso português.
  2. Na revista Communio – de que foi um dos fundadores (no início dos anos 70) e que assinei de 1986 a 2007, na edição portuguesa – no nº 38 de 2011, da edição publicada nos Estados Unidos, apareceu um discurso seu às Comissões Doutrinais dos bispos europeus, que tinha proferido em Maio de 1989 (!), em que o então Prefeito da CDF se detém no tema das Dificuldades que a fé enfrenta na Europa de hoje. Os temas e conceitos-chave são ainda de uma impressionante actualidade. Se dissermos que as referidas dificuldades se generalizaram, infelizmente, pelo menos a grande parte do mundo ocidental, não será exagero. Apenas posso transcrever o início que adivinha o tom, mas também a profundidade da análise então feita. Começa assim:
    «Enquanto bispos que carregam a responsabilidade pela fé da Igreja nos nossos países, perguntamo-nos [1º] onde residem de modo especial as dificuldades que as pessoas têm com a fé, hoje, e [2º] como podemos nós, rectamente, responder-lhes. Não precisamos de uma ampla pesquisa em ordem a respondermos à primeira pergunta. Existe algo semelhante a uma ladainha de objecções à prática e ao ensino da Igreja; e, hoje em dia, a sua regular recitação tornou-se como que o cumprimento de um dever para os Católicos de pensamento progressista. Podemos verificar os elementos principais desta ladainha: [a] a rejeição do ensino da Igreja acerca da contracepção, o que significa dizer colocar ao mesmo nível moral qualquer tipo de meios para prevenir a concepção, sobre cuja aplicação/uso apenas a “consciência” individual pode decidir; [b] a rejeição de qualquer forma de “discriminação” relativamente à homossexualidade e a consequente asserção de uma equivalência moral para todas as formas de actividade sexual, desde que elas sejam motivadas pelo “amor” ou pelo menos não magoem ninguém; [c] a admissão dos divorciados recasados aos sacramentos da Igreja; [d] e a ordenação sacerdotal das mulheres. Como podemos ver, há questões muito diferentes ligadas nesta ladainha. As duas primeiras exigências [a e b] pertencem ao campo da moral sexual; as duas seguintes [c e d] à ordem sacramental da Igreja. Um olhar mais demorado, contudo, torna mais claro que estas quatro questões, estão, não obstante as suas diferenças, muito vinculadas: brotam de uma única e mesma visão da humanidade, dentro da qual opera uma noção específica da liberdade humana» (tradução do inglês, minha).
  3. O seu papel como presidente da Comissão de doze cardeais encarregada de preparar um projecto para o Catecismo da Igreja Católica (CIC), coadjuvada por uma outra Comissão, encarregue da redacção propriamente dita, foi da maior relevância. Aliás a ideia de um catecismo universal foi, em parte, uma ideia sua. Após seis anos de intenso trabalho, sempre presidido pelo cardeal Ratzinger em todas as diversas frentes e fases e com a colaboração de todo o episcopado da Igreja Católica, o Catecismo seria aprovado pelo Papa em Junho de 1992 e publicado dia 11 de Outubro do mesmo ano. Era o dia do 30º aniversário da abertura do Concílio e, curiosamente, podemos agora constatar, praticamente a meio, ou seja, no auge, do longo pontificado de João Paulo II. Fruto maduro do Concílio e de um pedido expresso pelos bispos reunidos em Sínodo Extraordinário, em 1985, o CIC «é uma exposição da fé da Igreja e da doutrina católica, testemunhadas ou iluminadas pela Sagrada Escritura, pela Tradição apostólica e pelo Magistério da Igreja», conforme escreveu o Papa ao mandar publicá-lo, acrescentando: «Vejo-o como um instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial e como uma norma segura para o ensino da fé». E assim também tem sido para mim, continuamente e mais do que nunca hoje, um instrumento precioso para educar e aprofundar o meu acto pessoal de fé e constatar quanto a fé católica, no que respeita ao seu conteúdo, é imbuída de razoabilidade (no sentido em que não é alheia à razão).
  4. Anos mais tarde, e poucos meses depois da sua eleição, Joseph Ratzinger já como Papa Bento XVI, em Junho de 2005, promulgava o Compêndio do Catecismo, «uma síntese fiel e segura do Catecismo da Igreja Católica» pois «contém, de maneira concisa, todos os elementos essenciais e fundamentais da fé da Igreja, de forma a constituir, como desejara o meu Predecessor, uma espécie de vademecum, que permita às pessoas, aos crentes e não crentes, abraçar, numa visão de conjunto, todo o panorama da fé católica» (cf. Motu Proprio para a aprovação e publicação).

2 Em 1999, surgia o seu mais conhecido livro sobre a Liturgia (tudo aquilo que constituiu a oração “oficial” da Igreja, o seu culto público). Ali revelava ao grande público toda a sua compreensão do culto divino cristão e a sua sensibilidade espiritual e estética litúrgica. A tradução das edições Paulinas (Fevereiro, 2001), apresenta o título Introdução ao Espírito da Liturgia. Os motivos do escrito, sintetiza-os o eminente Autor no Prefácio, do qual cito algumas passagens: «Podia dizer-se que, em 1918, a Liturgia assemelhava-se em muito a um fresco que, apesar de intacto, estava coberto por reboco. […]. Através do movimento litúrgico e, definitivamente, após o Concílio Vaticano II, o fresco foi posto a descoberto e, por um instante, ficámos fascinados pela sua beleza, pelas suas cores e formas. Porém, entretanto, na sequência de reconstruções e restaurações falhadas e devido a vagas de multidões afluentes, o fresco encontra-se em grande perigo, ameaçado de ser destruído se rapidamente não se diligenciar o necessário para pôr termo a essas influências nocivas».

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E por isso, influenciado por um escrito de um dos seus grandes mestres, Romano Guardini, que tinha publicado, em 1918, um trabalho sob um título semelhante – Sobre o Espírito da Liturgia – o então cardeal Ratzinger entende recomendar um novo respeito pelo milenar “fresco”, ou seja, pela Sagrada Liturgia, e apresentar numa curta, mas profunda obra, «uma nova compreensão do seu testemunho e da sua realidade». E afirma com mais detalhe qual é a sua intenção mais profunda: «Quero ajudar a fazer compreender a fé e a contribuir para uma execução correcta da sua essencial forma de expressão dentro da Liturgia», e vaticina que este seu contributo possa constituir «um novo estímulo para […] um movimento pela execução correcta da Liturgia no seu exterior e interior». De facto, logo ao assumir a Cátedra de Pedro, deu bem a entender, a quem esteve atento, o modo como celebrava os Sacramentos, particularmente a Eucaristia: o seu sentido da sacralidade, e como a fé autêntica se deve exprimir no culto divino, na arte de bem celebrar e nunca numa indecorosa vulgaridade e atitude ou modos negligentes que em nada predispõem a uma verdadeira e plena participação interior por parte dos fieis.

Já dois anos antes, em 1997, na sua breve autobiografia, tinha afirmado as suas preocupações quanto ao estado a que tinha chegado a prática litúrgica. Depois de expressar a sua «estupefacção» (sic) pela quase proibição ou impedimento do Missal anterior ao de Paulo VI, consubstanciando assim uma «rotura na história da liturgia» (sic) e pelo «facto de [este] ter sido apresentado como um edifício novo», afirmava o cardeal Ratzinger:

«O problema é que, quando a liturgia é algo que cada qual pode fazer à sua maneira, ela deixa de nos poder dar aquela que é a sua verdadeira qualidade: o encontro com o mistério, que não é produto das nossas acções, mas a nossa origem e a fonte da nossa vida. Para a vida da Igreja, é dramaticamente urgente um renovamento da consciência litúrgica, uma reconciliação litúrgica, que volte a reconhecer a unidade da história da liturgia e compreenda o Vaticano II não como rotura, mas como momento evolutivo. Estou convencido de que a crise eclesial em que actualmente nos encontramos depende, em grande parte, da decadência da liturgia, que, por vezes, é mesmo concebida como etsi Deus non daretur: como se já não interessasse se Deus está ou não presente nela, se Ele nos fala e nos ouve ou não. Mas se na liturgia já não aparece a comunhão da fé […], a comunidade celebra-se apenas a si mesma, coisa que não tem qualquer valor. […]. É por isso que precisamos de um novo movimento litúrgico, que recupere a verdadeira herança do Concílio Vaticano II» (cf. A Minha Vida, pp. 106-108).

Entretanto, os perigos em que então se encontrava o “fresco” foram danificando-o cada vez mais, até se revelar necessário corrigir abusos, arbítrios e até actos graves, com a publicação, em Março de 2004, de uma Instrução «sobre algumas coisas que se devem observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia», intitulada Redemptionis Sacramentum, preparada pela Congregação romana responsável pelo Culto Divino, por mandato expresso do Papa João Paulo II, e em estreita colaboração com a Congregação chefiada por Ratzinger.

Ainda no âmbito litúrgico, anos mais tarde, assumiu a maior relevância em múltiplas dioceses da Igreja de Rito Romano a Carta Apostólica Summorum Pontificum (SP), de 7 de Julho de 2007, que liberalizava o uso da liturgia romana na forma anterior à reforma realizada em 1970 por Paulo VI, uma vez que, conforme Bento XVI explicava «em algumas regiões, contudo, não poucos fiéis estavam apegados, e continuam a estar, com grande amor e afecto às formas litúrgicas anteriores, que tinham impregnado tão profundamente a sua cultura e o seu espírito». Em carta aos bispos, anexa à SP, o Papa Bento reforçava: «Bem depressa, porém, se constatou que não poucos continuavam fortemente ligados a este uso do [anterior] Rito Romano que, desde a infância, se lhes tornara familiar». Cerca de quatro anos depois, em Abril de 2011, era emitida uma Instrução, expressamente aprovada pelo Sumo Pontífice, que regulamentava a aplicação da SP, da qual sublinhava resumidamente os objectivos pretendidos com esta iniciativa do Papa: «a) oferecer a todos os fiéis a Liturgia Romana segundo o Usus Antiquior, considerada como um tesouro precioso a ser conservado; b) garantir e assegurar realmente a quantos o pedem o uso da forma extraordinária, supondo que o uso da Liturgia Romana vigente em 1962 é uma faculdade concedida para o bem dos fiéis e que por conseguinte deve ser interpretada em sentido favorável aos fiéis, que são os seus principais destinatários; c) favorecer a reconciliação no interior da Igreja».

Na entrevista a Peter Seewald, nas Dernières conversations (2016), comentava o Papa Emérito a propósito da reintrodução da Missa segundo o uso antigo: «Não devemos acreditar que a partir de agora existe uma outra Missa. São duas maneiras de a interpretar [ou celebrar] ritualmente que, entretanto, se inscrevem num único rito fundamental. Sempre disse e continuo a dizer que era importante não interditar brutalmente e integralmente o que antigamente era a dimensão mais sagrada da Igreja para os homens. Uma sociedade que interdita o que, desde há muito tempo, considerou mesmo como o seu núcleo, é impossível. A semelhança interna da outra [maneira de celebrar] deve permanecer visível. Portanto, eu não respondi a motivações tácticas nem Deus sabe a quê; procurei a reconciliação interna da Igreja com ela mesma» (p. 230; tradução minha).

Infelizmente, quer em Portugal, onde esta questão das formas do Rito Romano chegaria mais tardiamente, não sem um certo desdém estratégico por parte de altos responsáveis, quer por esse mundo fora, constata-se que esta «reconciliação interna da Igreja», tem tido as suas dificuldades. Manifestam-se redutoras incompreensões mútuas a que não são alheias leituras mais ideológicas que teológicas e até tendencialmente sectárias. É lamentável! Um olhar mais alargado à história milenar da Igreja permite ver que na Igreja Católica, tanto no Ocidente como no Oriente, sempre conviveram múltiplos ritos ou tradições litúrgicas, em diversas formas e línguas antigas (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 1200-1203). De facto, já em 1988 antevia João Paulo II: «A diversidade litúrgica pode ser fonte de enriquecimento, mas também pode provocar tensões, incompreensões recíprocas e até cismas. Neste domínio, é claro que a diversidade não deve prejudicar a unidade. Ela só pode exprimir-se na fidelidade à fé comum, aos sinais sacramentais que a Igreja recebeu de Cristo e à comunhão hierárquica» (Carta Apostólica Vicesimus quintus annus, n. 16). (Continua)