Depois do massacre de dia 7 de Outubro de 2023, assistiu-se a uma campanha que seguiu um guião, ditado ou não, com um elevadíssimo grau de profissionalismo. Os protestos começaram por simular a equidistância da praxe. Reconhecia-se o direito de Israel se defender dos ataques terroristas do Hamas – ainda era só o Hamas – mas já se sublinhava a restrição: no respeito do direito internacional. Em seguida, censurou-se a Israel o uso desproporcionado da força. Daí passou-se para o massacre israelita. Foi um passo, e pequeno, até se atirar à cara dos «sionistas» a acusação de genocídio dos palestinianos. Desse modo, transitou em julgado a sentença que estabelecia a equivalência moral entre o genocídio dos judeus na Europa e o pretenso genocídio dos palestinianos às mãos dos judeus. A partir desse momento, deu-se início à morte social dos judeus. O aggiornamento lexical fixou que se tratava de um «genocídio».

Aliás, os activistas e as diversas acções de protesto não são coisa menor. Nas universidades, seja nos acampamentos, seja nas exigências de corte dos laços com congéneres israelitas, não se trata de meninos malcriados a repetirem, às vezes por eles incentivados ou com a sua aprovação, os gestos de rebeldia dos pais. Não são birras de miúdos em busca de atenção, que são, claro está, peões devidamente jogados. Pelo contrário. Enquanto a cobertura mediática incide nos protestos, quando estes passam, o que fica, cristalizado, no leito do rio são os termos do debate: genocídio, ocupação, colonização ou limpeza étnica. A isso somou-se a ausência do acompanhamento noticioso dos reféns, a repetição acrítica das fontes palestinianas, leia-se do Hamas, e a desvalorização institucional da situação – evidente à saciedade nas universidades.

O anti-semitismo ganhou as palavras e, por isso, ganhou a rua. Ninguém se atreve hoje, em nenhuma capital da Europa, a pôr à janela uma bandeira de Israel, ao passo que em todas elas são visíveis bandeiras e cartazes palestinianos. E não se atreve por medo. Convém repetir: por medo. Não um medo localizado, concretizado em pessoas ou actos designados, identificáveis e, pelo menos em certa medida, previsíveis. Trata-se antes de um medo difuso, de um medo como significante flutuante, que põe em causa o laço social básico: o medo de se sentir exposto a um poder desconhecido.

Não por acaso, depois dos protestos vieram os actos. O que se passou nas celebrações do 76.º aniversário da fundação do Estado de Israel no Cinema São Jorge, com o arremesso – contra pessoas – de ovos e balões de tinta, e nos seus equivalentes internacionais, indicia um sentimento de impunidade da boa causa que justifica a violência e quem a exerce. Precisamente por isso o arrojo nos actos multiplica-se. Ontem, um ataque numa sessão eminentemente político-estatal, hoje, violência civil sobre cidadãos inocentes. Isto aos olhos das pessoas vulgares.

Aos olhos dos justos não há distinções a fazer: a culpabilidade é universal. E nela revêm-se em negativo na sua pureza universal. O judeu voltou a ser o anti-tipo – como já o havia sido para a ideologia ariana. Abatidas pseudo-moralmente as inibições internas, a violência aumenta e, a cada êxito externo, revigora o seu ímpeto. Não só se exerce contra as pessoas, que ainda podem ser vistas como alter ego, exige também a negação do espaço social comum para assim retirar aos judeus a sua humanidade de pleno direito. O judeu não pode viver no seio dos homens, tem de ser morto socialmente para ser desse modo esbulhado da humanidade comum. Decorre daí a necessidade lógica de proibir aos judeus o acesso em pé de igualdade ao mundo comum. Num protesto em Nova Iorque, foi-lhes dada uma oportunidade de abandonarem as carruagens, aceitando assim o destino que lhe é imposto. São remetidos novamente ao estatuto de párias indefesos. Não é de admirar que um desses manifestantes tenha lamentado que Hitler já não esteja cá, teria exterminado os judeus todos. Se dúvidas houvesse, estão desfeitas. Anda-se em busca de novas Judenaktion.

Historia magistra vitae? Não é. Nunca foi.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR