Não há volta a dar. Perdidas as eleições, o discurso de esquerda passa, como um instrumento de precisão dotado de vida própria, à desqualificação dos adversários políticos com base no progressismo. Desta vez, a causa ocasional foi um logótipo e, depois, um livro.  Em ambos os casos, está bem de ver, tratou-se de um retrocesso histórico, um atropelo às conquistas civilizacionais, uma recaída nas trevas. As acusações declinam-se no plural mas resumem-se no singular: a História tem um sentido. Um sentido que esse discurso entende como constitutivo e não regulativo. Assim sendo, o curso do mundo segue um plano autónomo, definido previamente. A contradição é evidente. A acção política é acção se, e só se, contribuir para a realização desse sentido que, desse modo, deixa de ser autónomo e passa a ser uma escolha política como as demais. É, aliás, a única maneira de agir politicamente e não se remeter ao quietismo. É também a única maneira de reclamar mérito na acção. Desse modo, salvaguardam-se duas coisas: o sentido da História e a acção política, mas isoladamente, escamoteando a incompatibilidade radical dos dois termos. É um conhecido truque de ventriloquismo. O discurso de esquerda apresenta-se como o boneco que o sentido da História faz falar, sempre e de cada vez que é preciso subtrair as escolhas e as propostas à discussão racional, isto é, à discussão que aceita a existência de razão nos outros.

Desta forma, esse discurso naturaliza o sentido e revela-se incapaz de diálogo, uma vez que se nega – na aparência – como sujeito autónomo e, por isso, político, e recusa ao outro – na realidade – o reconhecimento da sua qualidade de sujeito. Despolitiza-se assim a coisa pública, ao arredar dela o pluralismo de opiniões e o compromisso entre as diferentes propostas que a acção requer. Não há, no entanto, simetria na objectivação do curso da História e da marcha do progresso que deles faz uma sucessão cega e irracional.

O discurso de esquerda pretende herdar e tomar para si a característica essencial do sentido autonomizado: a sua validade eterna; e, como representante desse sentido, é ungido em toda a sua glória pelo facto de o representar. No deserto só ali há a água da vida. Mas tal como o espírito sopra onde quer, também o sentido da história desce sobre quem quer. Os que não foram bafejados por ele são de raiz alheios à racionalidade e mera quantité négligeable. Nesse modo de pensar, à partida não podem sequer aceder ao estatuto de inimigos a combater. Despersonalização e despolitização acabam sempre por se darem as mãos. O passo seguinte, inevitável, é erradicar toda e qualquer manifestação da interioridade humana indominável, ou seja, toda a expressão simbólica, seja ela a palavra ou a imagem. Por isso, politicamente, os sequazes desse discurso comportam-se como jívaros: procuram cabeças para reduzir. E encontraram-nas. Num logótipo e num livro.

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