Muito recentemente uma parte considerável da elite opinativa nacional, decidiu seguir o costume já outorgado neste país de que, sempre que há um tema dito mediático, nos devemos apressar a analisá-lo e a esmiuçá-lo antes que passe de moda e fiquemos para trás no mundo dos artigos de opinião, mundo este que é tão relevante como efêmero, dado a rapidez com que aparecem e desaparecem, se fazem e refazem opiniões. Estando eu imbuído desse mesmo frenesim acabei também por não resistir e fazer jus ao ditado: “bem prega São Tomás, faz o que ele diz, não faças o que ele faz!”
Tanto as eleições dos EUA como a revisão dos Currículos das áreas de ensino em Portugal parecem entusiasmar os nossos comentadores, desde jornalistas, analistas, políticos e padres, ou mesmo padres políticos.
Uma vez que sou professor e me apercebi que existiam alguns equívocos relativamente à Disciplina de Cidadania e Desenvolvimento em algumas opiniões expressas e particularmente na opinião de algum clero mais jovem, com um certo espírito de precipitação, como muitas vezes eu próprio tenho, decidi dar algumas notas sobre a temática e os equívocos, certamente por desconhecimento, que apontou o senhor Padre Bastos. Creio que esses equívocos, expressos sobretudo nos seus últimos artigos, são já quase uma imagem de marca da sua escrita, que ainda respeitável é tal como a de todos passível de ser analisada, quando o conteúdo é suficientemente interessante para tal, ou criticada no prisma dialógico, um dos lugares do crescimento sapiencial do Ser Humano.
Segundo aquilo que o cronista afirma lhe terem dito, a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento “continua a ser o que era no início do século, Cidadania só serve para falar dos problemas da turma, e se o professor estiver muito condescendente, para estudar para um teste que se tem no dia seguinte”. Ora, um professor que lecione Cidadania e leia esta descrição não pode deixar de se indignar, pois o currículo da mesma é em determinadas faixas etárias extremamente complexo e é precisamente essa complexidade que tem suscitado opiniões diversas, que a ver pelo artigo do jovem clérigo não parecem ter assim tanta relevância para a formação pessoal e social das crianças e jovens dos nossos tempos. É importante também esclarecer que a disciplina tem valor académico e que “conta para a nota”, para transitar ou não, e tem critérios de avaliação, ao contrário do que é referido no dito artigo. Também não é o lugar para resolver os problemas da turma. Para isso existem outros espaços letivos com o diretor de turma, até porque a disciplina não é dada em muitos casos, se não mesmo na maioria, pelo diretor de turma. Sim, a disciplina apenas tem um tempo letivo semanal, contudo, o seu caráter é transversal e por isso mesmo ela abrange outras áreas de saber trabalhadas em articulação pelos docentes.
Assim sendo, teria sido mais útil, na minha opinião, o cronista ter dedicado algum tempo a conhecer o enquadramento da disciplina até porque a mesma merece a nossa maior atenção, uma vez que é fundamental para a formação dos nossos jovens. Atenção essa que se tem virado para os conteúdos abordados na mesma e que irão ser revistos proximamente como o de todas as outras disciplinas nas suas chamadas Aprendizagens Essenciais. É um processo normal e habitual caro padre. Visitar o programa teria ajudado ao conhecimento do mesmo e creio que também ao reconhecimento que existem temas específicos que têm de ser revistos. Mas posso poupá-lo a esse trabalho e dizer-lhe que em Cidadania e Desenvolvimento se trata ao longo dos vários Ciclos temas como: Direitos Humanos; Interculturalidade; Desenvolvimento Sustentável; Educação Ambiental; Saúde; Media; Instituições e pacificação democrática; Segurança Rodoviária; Bem-estar animal; Voluntariado; Mundo do trabalho; Empreendedorismo; Literacia Financeira e educação para o consumo; e a tão afamada Igualdade de Género. Alguns trabalhos de docentes de Educação Moral e Religiosa, por exemplo, já mostraram que o programa de Cidadania tem um cruzar de conteúdos muitíssimo semelhante àquele que é o programa desta última disciplina facultativa. Devemos até lembrar, pois até isso lhe foi alheio, dada a superficialidade com que abordou o tema, que a própria Igreja Católica, por iniciativa do Papa Francisco propôs ao mundo hodierno o chamado Pacto Educativo Global com 7 grandes tópicos que se cruzam com muitos dos temas e valores inseridos na disciplina de Cidadania em Portugal.
Ainda assim, seria desonesto intelectualmente se dissesse que tudo está bem, pois bem sabemos que a polémica que chamam de ideológica referente à disciplina de Cidadania se prende com o tema da Igualdade de Género, ou melhor, com o tema do Género. Devo dizer ao leitor que percorridas as Aprendizagens previstas para a disciplina não há nada que salte a olho e fira os consensos mais alargados. O problema está sim quando se tem de recorrer aos recursos didáticos e informativos disponibilizados pelo Ministério da Educação, aí sim, lá vão aparecendo algumas tentativas daquilo a que o Papa chama de colonização ideológica e que o padre Bastos por acaso não referiu. O Papa Francisco diz mesmo que “a ideologia de género é a mais perigosa das colonizações ideológicas porque vai mais além da questão sexual. É perigosa porque dilui as diferenças, e porque a riqueza dos homens e mulheres e de toda a humanidade é a tensão das diferenças”, ou que “a questão de género vai anulando as diferenças e fazendo um mundo igual, todo cego, tudo igual. E isso vai contra a vocação humana”. E da vocação humana faz parte a liberdade de crescer de forma natural sem doutrinações baratas que se não for o bom senso de muitos professores estaríamos a dar a crianças de 10 anos fichas de trabalho onde elas se podem identificar com uma enormidade de géneros sabe-se lá saídos de onde.
Os guias para a Cidadania e Igualdade de Género, que tão bem foram dissecados e criticados por Sérgio Sousa Pinto, do PS, ou os estudos da ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo) aplicados às nossas crianças, pois constam dos recursos que referi, são evidentemente e com razão uma preocupação para muitos pais e mesmo professores, que vêem nestes documentos propósitos muito para além do ensinamento de que é garantida “a existência de oportunidades iguais para todos sem discriminação de género, idade, raça, religião, ideologia e condição social” (Pacto Educativo Globo – Papa Francisco). Ir além disto é ir contra a Constituição Portuguesa quando esta diz no seu artigo 43º que “O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.” Bem como a Carta dos Direitos Fundamentais da UE quando diz no seu artigo 14º que “são respeitados, segundo as legislações nacionais que regem o respectivo exercício, a liberdade de criação de estabelecimentos de ensino, no respeito pelos princípios democráticos, e o direito dos pais de assegurarem a educação e o ensino dos filhos de acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e pedagógicas”.
Saiba ainda o leitor, e talvez também o padre Bastos, que as questões associadas ao género, à defesa da vida e às concepções variadas sobre a sexualidade humana, não estão propriamente explanadas na dita Cidadania, mas no chamado Projeto de Educação para a Saúde e Educação Sexual, aquilo a que vulgarmente as pessoas chamam de educação sexual e que não está inserida diretamente na disciplina de Cidadania, aqui sim, pode abundar um manancial de experimentalismos com as nossas crianças e novamente, volta a valer o bom senso dos professores.
Dada toda esta longa explicação eu até percebo que o padre Bastos não se queira dedicar muito a aprofundar a importância da cidadania e a justa discussão sobre a mesma, pois tenho a sensação que a sua grande mentora destas matérias é a candidata às eleições Americanas, Kamala Harris. Esta sim uma nata defensora da liberdade económica, da igualdade e da vida humana. Do artigo que o jovem padre publicou sobre a mesma, no qual estou certo que não quis tomar partido político, destaco os elevadíssimos argumentos que poderiam ser abordados numa aula de Cidadania sobre política americana dada pelo jovem padre Bastos: 1) os Estados que mais votam nos Republicanos são os estados mais pobres do EUA.
2) os Estados que mais votam nos Republicanos são os estados onde há mais filhos de mães solteiras.
Caro padre, num exercício de cidadania política vejamos: será que por serem Estados mais pobres, preferem votar num sistema que favoreça o mercado para saírem da miséria, em vez de, à boa maneira da economia socialista, estarem à espera de que a mamã-Estado lhes dê o mínimo para a subsistência? Ou será também que porque recusam o aborto, é claro que tem de haver mais mães solteiras nos Estados mais alinhados com o Partido Republicano. Nos estados democratas é mais fácil: abortam-nos.
Permita-me em jeito de resposta a ambos os seus artigos de opinião deixar uma sugestão: quanto à Cidadania é melhor inteirar-se primeiro das matérias para evitar tamanhas superficialidades numa discussão que merece elevado nível. Quanto à política americana, convém ver o que o Papa diz de forma aberta e transparente sobre os políticos que defendem o aborto e sobre o próprio aborto. Não chega dizer que a Igreja é contra.
Felizmente o clericalismo disfarçado de modernidade atraente e pseudo culta, tal como todo o clericalismo bafiento ou de que género for não tem qualquer relevância – daqui a uns anos, a continuar assim, ninguém lhes (vos) ligará nenhuma.
Este artigo é escrito em resposta ao artigo de João Bastos que contém várias lacunas graves sobre a Disciplina de Cidadania, os seus conteúdos e a pertinência da discussão atual.
Professor, cristão e às vezes “opinador”