Nos Estados Unidos é cerimonial, aquando do início de uma audiência de julgamento em tribunal, que todos na sala se levantem no momento da entrada do Juiz. Quantas vezes já não vimos nisso num filme ou série televisiva? “All rise!”. No caso específico de o queixoso ser um Estado ou o Governo Federal, existe outra cerimónia que é igualmente importante. Vamos assumir para este exemplo que o queixoso é o Estado. Depois de sentar-se, o juiz dirá: “Bom dia, senhoras e senhores, chamo agora o caso Estado (inserir aqui um) versus (o nome do réu). Estão os dois lados prontos?”. O primeiro a responder será o advogado pelo Estado que dirá, “Pronto pelo povo, Meritíssimo”.

Kamala Devi Harris começou a distinguir-se na esfera pública ao assumir o lugar de Procuradora-Geral do Estado da Califórnia, tornando-se assim a primeira mulher, a primeira afro-americana e ásia-meridional, a ter essa posição, quando tomou posse em janeiro de 2011. O seu desempenho como Procuradora-Geral foi repleto de sucessos, tais como fazer frente a empresas de financiamento, bancos, companhias de tecnologia; liderou um conjunto de decisões a favor de liberdades individuais e de não discriminação, e na proteção do ambiente. Num exemplo inovador, o Departamento de Justiça da Califórnia fez com que este Estado fosse o primeiro na nação a requerer que agentes da polícia usassem câmaras de filmar no uniforme. Por outro lado, foi-lhe muitas vezes apontado ser excessivamente severa nos casos criminais, com um número muito elevado de encarcerados, sendo demasiado punitiva de pais abusivos de crianças, e por ter um número muito elevado de sentenças mal decididas.

Quando Barbara Boxer fez saber que não iria continuar como Senadora pela Califórnia, Harris avançou com a sua candidatura, sendo a favorita para ganhar. A candidata ao Senado obliterou as primárias, e na eleição geral de 2016 obteve 60% dos votos. Ao ganhar, fez imediatamente saber que uma das suas prioridades políticas em Washington  seria proteger migrantes do que se previa ser uma campanha de separação de famílias, xenofobia e racismo da Administração Trump. No Senado, e para o vosso cronista que seguiu em proximidade alguns dos casos mais famosos dos últimos anos na câmara alta do Capitólio, Kamala distinguiu-se por ser acutilante, estrita, informada e implacável. Ficaram na memória as audiências com o então Procurador-Geral Pete Sessions (“questões rápidas fazem-me ficar nervoso”), ou com o nomeado para o mesmo lugar Bill Barr (“estou a tentar perceber o sentido da palavra ‘sugerir’”) e o Juiz Kavanaugh na audiência para o Supremo Tribunal (“gostava de saber que pessoa está a falar”), para dar alguns exemplos. Finalmente, nesta pequena viagem no tempo, Harris entra na corrida para a nomeação pelos Democratas para ser candidata nas presidenciais de 2020 (com o slogan, Kamala, for the people). Em dezembro de 2019, sem fundos para a campanha e com as sondagens a dar-lhe números residuais, retirou-se da corrida, endossando Joe Biden, que depois a selecionaria para ser a sua Vice-Presidente. O resto, como se diz, é história.

Seria fastidioso estar aqui a explicar todas as medidas adotadas pela Administração Biden/Harris que se revelaram importantes, transformativas, e de grande ajuda para os americanos: apoios para superar a pandemia, emprego em valores historicamente altos, investimento em infraestruturas, legislação para controlo de armas, proteção do casamento entre pessoas do mesmo sexo e de raças diferentes, recordes nos mercados bolsistas, diminuição significativa do crime violento, negociações com empresas de serviços de saúde para redução dos preços, pacotes de investimento na produção nacional, apoios na implementação e investigação em energias renováveis, ajudas financeiras e militares para a Ucrânia, facilitação da expansão da NATO, etc, etc, etc.

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Harris irá concorrer à eleição de novembro apoiada nestes sucessos que são também o legado de um dos Presidentes mais transformadores, mais bem-sucedidos, mais capazes, que os Estados Unidos viram desde Roosevelt. O Presidente Biden merece um artigo de opinião só sobre ele, e o vosso autor irá propor isso ao Observador. Voltando a Kamala, há agora outros desafios em que ela será a pessoa certa para lidar o movimento democrático no país. Um Supremo Tribunal totalmente descontrolado, o final da proteção federal à saúde reprodutiva, a tentativa por parte de Republicanos, nos estados e em Washington, de banir a fertilização in vitro, a pílula do dia seguinte, a pornografia, divórcios de mulheres abusadas fisicamente. Depois há o Projeto 2025, a Agenda F, a guerra contra o conhecimento e a ciência, a prometida deportação de milhões de imigrantes, a progressiva militarização da polícia, a manietação do sistema judicial, o espectro de uma presidência imperial.

Pode-se dizer que Harris tem o “problema” de ser uma mulher num país misógino. Uma mulher de cor num país de racismo estrutural. De ter um passado com polémicas mencionadas acima. De não agradar a todos dentro do Partido Democrata. Os Republicanos irão mentir sobre o seu perfil, que “se deitou para chegar ao topo”, que “é histérica”, que “é inconsequente”, tentando corroer a sua candidatura como antes fizeram com Barack Obama, com Hillary Clinton, e com Joe Biden. Terão sucesso? É cedo para saber. Poderão os seus “problemas” serem demasiada bagagem para o eleitorado americano? Iremos ver.

Porém, uma coisa é capital, a priori: 2024 não é 2016. Tirando o momento La Palice, as condições não são as mesmas para uma mulher candidata, sendo de cor, ou não, tendo pontos de discórdia entre Democratas e independentes, ou não. Em 2016 não sabíamos, na total extensão, o perigo que é Trump e os seus acólitos. Não sabíamos o que ia ser retirado, e o que se arrisca perder nos próximos anos: o final da democracia como a conhecemos nos Estados Unidos. Trata-se agora de correr uma campanha sem erros, ser a mensageira do sucesso da Administração Biden como o Presidente não conseguia ser, e usar todos os seus dotes, como advogada, procuradora, política, para explicar aos americanos o que acontecerá se não for eleita. Kamala Harris, for the people.