Na Europa estamos constantemente a ouvir que Kamala Harris é a candidata mais moderada na corrida para a presidência dos Estados Unidos, no entanto a população americana parece discordar – uma sondagem recente do The New York Times e da Siena College mostrou que mais eleitores consideram Kamala demasiado liberal [nos Estados Unidos o termo “liberal” significa mais ou menos o mesmo que “esquerda” na Europa] do que Trump demasiado conservador. Será que estamos a perder alguma coisa na tradução enquanto os factos atravessam o Atlântico?
Quando os eleitores foram questionados se Harris “é demasiado liberal ou progressista, não é suficientemente liberal ou progressista, ou não concordam com nenhuma das definições”, 44% dos inquiridos responderam: “demasiado liberal ou progressista”, por outro lado, quando questionados se Trump “é demasiado conservador, não é suficientemente conservador ou não concordam com nenhuma das definições”, apenas 32% responderam “demasiado conservador”. Estes dados são certamente surpreendentes para a maioria dos europeus uma vez que a mensagem continuamente recebida deste lado do oceano é que Trump é o candidato mais “extremista” entre os dois.
Este resultado poderia ter sido facilmente refutado pelos democratas simplesmente se Harris tivesse um historial consistente e uma agenda que a posicionasse como moderada; no entanto, a troca constante nas posições que defende e a crença que uma campanha baseada no slogan “Não sou Trump nem sou Biden” é suficiente, deixou margem para dúvidas – causando desconforto no campo do partido democrata. Isto, juntamente com o debate presidencial a 10 de Setembro em que não se aprendeu nada de novo, a leve entrevista que deu à ABC e a falta de pormenores sobre o seu programa eleitoral conduzem a duas importantes questões que há muito deviam ter sido respondidas: quem é exatamente Kamala Harris e o que é que ela defende?
Ao longo da sua carreira, Harris parece ter adotado uma estratégia de camaleão, mudando os seus pontos de vista consoante o que aparenta beneficiar mais os seus objetivos em cada momento. Enquanto procuradora, defendeu dois lados: contribuiu para o encarceramento em massa (principalmente de criminosos não violentos) e lutou abertamente contra a decisão de reduzir a sobrelotação das prisões da Califórnia, mas também apoiou programas de apoio a alternativas à prisão (programa “Back on Track”), recusou-se a pedir a pena de morte para um homem que matou um polícia, mas mais tarde apoiou o sistema de pena de morte da Califórnia. Afinal, em que ficamos? Foi Harris “dura” ou “leve” contra o crime? É muito difícil de determinar. Nas suas próprias palavras em 2019, foi uma “procuradora progressista” (separando-se assim de parte do seu passado de forma a promover o seu caminho num posicionamento político progressista em DC). Será que numa altura em que se quer posicionar ao centro isto se mantém? Não é claro.
Nas suas candidaturas à presidência, segue a mesma incoerência no seu posicionamento e nas políticas que defende. Quando decidiu candidatar-se em 2019, fê-lo com base numa agenda progressista que resultou no abandono da corrida ainda antes de um único voto ser feito nas primárias democratas. Agora (aparentemente tendo aprendido com os erros do passado) está a tentar algo diferente, parece ter regressado ao centro, promovendo-se como moderada e defensora da lei e ordem. Harris defende que as reviravoltas no seu posicionamento político não são relevantes argumentando que “os seus valores se mantém os mesmos”. Infelizmente, não só é extremamente difícil de provar valores como o seu historial é bastante público.
Harris esteve no Senado entre 2017 e 2021, o que nos dá uma visão factual sobre a sua posição — com base no seu historial de votos1, Harris é a segunda democrata mais liberal a servir no Senado no século XXI. Desde o início do século, houve 109 democratas diferentes no Senado, incluindo o antigo Presidente Barack Obama e o atual Presidente Joe Biden. Para contextualizar, Obama tem um posicionamento mais liberal do que 63 senadores democratas, enquanto Biden (considerado dos presidentes mais progressistas dos EUA) tem um posicionamento mais liberal do que 52, situando-se assim os dois no centro da ideologia democrata. Num impressionante contraste, o posicionamento de Harris no senado coloca-a na extrema esquerda do seu partido.
No que respeita aos assuntos mais próximos do coração dos americanos, Harris co-patrocinou, no passado, vários projectos de lei alinhados com com fortes pontos de vista liberais: co-patrocinou o Green New Deal progressista — um projeto de 10 mil milhões de dólares para reduzir os gases com efeito de estufa até 2045, co-patrocinou o projeto de lei “Medicare for All”, que teria posto fim ao sistema de seguros de saúde privados nos EUA (tendo acabado por mudar de posição durante a campanha), e defendeu um programa obrigatório de retoma de armas, o que representatia um enorme risco para a Segunda Emenda da constituição americana (não esqueçamos que ela agora anuncia com orgulho o facto de ter uma arma).
O único voto que importa é o voto no dia das eleições, mas numa eleição com tanto em jogo os americanos merecem saber exatamente no que estão a votar. A constante mudança de discurso de Harris levanta mais perguntas do que oferece respostas, mas o seu historial não mente — até esta eleição em que está a tentar vender uma ideia de que é moderada Kamala Harris posicionou-se na extrema-esquerda do seu partido.
1 – Fonte: Voteview – O Voteview permite aos utilizadores ver todas as votações feitas no Congresso na história americana num mapa dos Estados Unidos e num mapa ideológico liberal-conservador que inclui informações sobre as posições ideológicas dos senadores e deputados votantes. As posições ideológicas são calculadas utilizando o método DW-NOMINATE (Dynamic Weighted NOMINAl Three-step Estimation).