Acabei de ler este ano a “saga” de seis volumes do escritor norueguês Karl Ove Knausgaard, “A minha Luta”. Não consegui esperar pela edição do sexto e último volume – “O Fim” -, que agora é publicado em português pela editora Relógio D’Água, e comprei a edição inglesa antes deste Verão. Este autor notabilizou-se por esta obra, a qual teve muito destaque no mundo literário, pois veio trazer disrupção no modelo do romance literário tradicional ao usar a chamada “autoficção”. Segundo Ruth Franklin, do Atlantic: “The massive autobiographical novel that has been the most unlikely international literary sensation of the past decade.” O autor, em vez de usar a ficção para narrar uma história, conta a sua mesma.
A obra questiona o que deve ser a literatura, com momentos épicos, como triviais. Desde as pequenas minudências da vida que o autor conta, à descrição minuciosa dos seus objetos pessoais, a narrar como prepara o pequeno almoço para os filhos, brinda-nos também com o relato de uma vivência, a infância, as perguntas da juventude, até encontrar o amor, relacionar-se com o passado de um pai autoritário, lidar com a doença mental da sua mulher e com a polémica e processos judiciais que enfrentou ao editar uma obra com tantas confidências pessoais.
O título do livro é o mesmo que o de Hitler, “Mein Kampf”: “A minha luta”. A obra não podia ser mais atual quando vivemos na era das redes sociais e do voyeurismo e esta necessidade de revelar tudo, quase uma sessão de psicologia pública permanente. Mas ele argumenta – no ensaio de 400 páginas, inserido no último volume, o qual contém uma mini-biografia de Hitler – que o problema deste ditador foi precisamente o de não ter tido a coragem da autenticidade. O caminho para a redenção e não para a vingança. Que mesmo sendo um homem como os outros, vivendo a infância também dura com o pai, com os desejos de sublimação artística, os ares do tempo e o seu isolamento, fizeram-no alimentar o ressentimento que verteu de forma copiosa na “solução final” e no ímpeto de destruição das duas Grandes Guerras que provocou. O sofrimento, em vez de purificado, foi ocultado e acumulado até já não ser possível senão libertar a torrente de raiva e inveja pelos seus supostos culpados.
Knausgaard conta como Hitler teve a sua educação sentimental e intelectual na Linz e Viena do início do século XX, na industrialização desenfreada, na indiferença a que eram relegadas as pessoas, o contexto do tédio dos intelectuais e da reivindicação da grandeza da Alemanha, a população engolida pela máquina do progresso e da fé cega na ciência, nas suas leituras de Hegel, nas sinfonias de Wagner, no isolamento e destrato da sua família, mas também na falta de coragem em relação aos seus talentos, nos complexos não resolvidos e na posterior busca de culpados, os judeus.
Como dizia Mark Twain, “Truth is stranger than fiction, but it is because fiction is obliged to stick to possibilities; Truth isn’t”. Será suficiente, em literatura, ficcionar personagens e histórias para captar autenticamente o drama e a aventura das vidas individuais? Será por esta frustração da ficção ficar aquém da vida, que Knausgaard embarca nesta viagem arriscada, mas alucinante?
Este desejo de autenticidade e a psicanálise pública de Knausgaard questiona-nos o que é verdade e ficção. Não sabemos bem qual a fronteira, mas ele assume que tudo aquilo é real. Este desvendar da sua vida interior é irresistível para todos, a afiançar no enorme sucesso que a obra teve e no frenesim mediático. Todos sabemos mais da sua vida do que provavelmente de um amigo ou familiar. Será que esta revelação da sua vida privada e da dos seus é um desabafo excessivo e descompensado? Enquanto lia os seis volumes e me ia questionando se aquela revelação da sua vida íntima era algo de ético, surgiu-me a ideia de que Knausgaard retrata as suas personagens na sua nobreza e, se abordar pontos fracos, foca a sua vulnerabilidade e não a sua fraqueza, o que é uma grande diferença e torna, assim, a narrativa elegante. Vulnerabilidade é a possibilidade que qualquer ser humano tem de cair, fraqueza é a escolha deliberada dessa queda. Mas o assunto presta-se a debate, com certeza. Alguns familiares não ficaram contentes ao serem retratados na narrativa, outros (a maioria), segundo ele e o que constou na imprensa, não se importaram. Talvez por este olhar, que pouco tem de cínico e pessimista.
A autenticidade que Knausgaard parece buscar é a da transparência sem filtros e moderadores, é, afinal, o que a grande literatura se propõe realizar: poder um homem ser a representação de todos. É esse o desejo da literatura, a “catarse” subjetiva de que falava Aristóteles na “Poética”. Mas será possível a autenticidade, sequer desejável? O autor debate-se com este desejo de compreender, de alcançar o sentido de uma vida, de vingar o terror que o pai lhe causou ao escrever para que não se repita; da luta por vencer na escrita à reivindicação do paradoxo do mundo, que tanto tem de sublime como de destruição maciça – sejam os holocaustos coletivos como individuais, sociais ou familiares. Acaba por reconhecer, que mesmo que procurasse verter toda a sua realidade, não contou nem parte da mesma.
Também aceito que Knausgaard aqui poderá ser chamado de narcísico, pois o que ele chama mostrar a “realidade” tal como ela é, é a sua realidade. Todavia, se fosse pouco universal, não falaria a tantas pessoas. Por sermos todos diferentes é que se torna impossível a comunicação completamente transparente, mas parece existirem histórias que representam todos os viventes. A alteridade na literatura quer prevenir precisamente esta pessoalização? Knausgaard contesta precisamente isto e o que Twain defende, a ficção não alcança nem uma ínfima parte do real.
O futebol, as bandas de rock alternativo, as namoradas, as bebedeiras, os amigos, os jantares e conversas intermináveis, a arte, os livros, as compras no supermercado e as tarefas domésticas, há em Knausgaard tanto de pulsão de vida como de angústia, e isso é o que nos atrai numa vida em que, pelo menos, há o desejo insaciável do bom e do belo e pouco aborrecimento.
Não há, em Knausgaard, aquele relato cínico do mundo em que há sempre algo de feio, falso e sem sentido, o torpor e o tédio. Não há, em Knausgaard, aquela descrença em tudo na vida, tão pós-moderna e intelectual, há, sim, uma busca genuína pela beleza, justiça e amor, a crença da sua existência nas pessoas e nas pequenas coisas, talvez como reação a uma inquietação por mais; e se essa batalha é muitas vezes perdida no dia-a-dia, ele afirma: “Sometimes it hurts to live, but there is always something to live for. Could you try to remember that?”
O pai era bêbado e inspirava medo e por isso ele sofreu com problemas de autoestima a vida inteira, mas Knausgaard não deixa de, antes de julgar, tentar compreender aquele homem. Porque se começou a refugiar na cave todos os dias depois do trabalho, porquê aquele perfecionismo obsessivo e o terror que qualquer sala exalava na sua presença? Se há um ressentimento ou uma dor profunda pelo seu pai, há uma ternura no fundo do seu coração. Aquele homem só podia ter algo de partido dentro de si, dizia ele. Mas não deixa de contar o que aconteceu. Se tenta compreender, não esconde a cena dantesca da sua morte, caído, com a boca contra o chão e cheio de urina, obeso e alcoólico, sozinho e já afastado da família e de todos. Como forma de catarse e “piedade”, como diz Aristóteles?
Knausgaard, na sua autenticidade, ao contrário da vida social, não quer deixar nada de pé e revela tudo. Desde as suas próprias inseguranças e incoerências, às dos outros, mas diz-se permanentemente indigno destes (o que aqui parece um pouco de falsa modéstia, mas nós perdoamos-lhe).
A vida dele é de um constante rebaixamento da sua pessoa em relação ao mundo, mas, em contraponto, há nele uma irresistível energia e paixão pelas pequenas e grandes coisas da vida. Ninguém acredita nesta menorização que tem algo de autojustificação – Knausgaard é visto como um rockstar da literatura e do coolness e ele sabe-o. É também visto como um exemplo da “beleaguered masculinity of our time”, segundo Paul Delany do Los Angeles Review of Books, um homem que encontra força na sua vulnerabilidade e combustível para a criatividade; na dificuldade que tem em criar os filhos, agora na perspetiva masculina; do desassossego, do insaciável desejo de justiça, honestidade e beleza ao cumprir a sua pessoa e perceber o mundo:
“I felt I needed to make a decision and stick to it for the rest of my life. I needed to become a good person.”
Mas esta transparência – do homem, do escritor – implica muitas vezes a revelação do escondido e não dito pelo mundo do “nós” e da linguagem. Este preço a pagar no mundo social por se ser “eu”, é alto e questiona-se se possível. Este homem é um desajustado do jogo social, mas não, por isso, menos lúcido. No sexto volume, dá-nos o exemplo da personagem Príncipe Mishkin, presente na obra “O Idiota”, de Dostoievsky:
“Prince Lev Nikolayevich Mishkin believes that what he sees, what is shown to him, is what it is, and that whatever is said is meant sincerely. He is oblivious to the ulterior motive, he does not understand irony, he is blind to the roles people play. He has no idea that the social world is a game. He is at one with himself, and assumes everyone is, too. But they are not (…) Roles are meaningful within the framework of the game, but as soon as the game is revealed to be just that, a game, they become meaningless. Who do you then become? The person you are? What does that mean? Mishkin is himself, the person he is. He is genuine. He is indivisible, no one’s twin (…) For that very reason he is doomed to remain outside humanity (…) A society comprising genuine individuals taking everything at face value is a society in which nothing can be concealed, nothing kept secret, no real variation established. In other words, the genuine is the opposite of the social. The social world classifies and groups, excludes, suppresses, elevates. The social world is a system of differences, a world in which everything and everyone is graded and differentiated. The idiot nullifies all differences, in his realm everyone is equal. It is not his goodness that causes the social world such problems, but his authenticity (…) What is the light in Dostoyevsky’s novels? It is grace (…) It cannot be grasped by language (…) Dostoyevsky’s grace pertains to the social world. In that world grace nullifies all distinctions, in grace all are equal. The radicalism of this is huge and almost unthinkable. Yet it is this, and nothing else, that Christianity is about. There is no difference between anyone. The most despicable person is as worthy as the best. Jesus said, whosoever shall smite thee on right cheek, turn to him the other also. He is a man, as you are a man; he is you. Strike him not. Such a thought is inhuman in that it comes from outside the social world. Indeed, is a divine thought.”
Um tema central na odisseia de Knausgaard é precisamente este, o da tensão entre o “Eu” e o “Nós” e como muitas vezes a necessidade de encontrar a essência do ser humano numa história pessoal pode ter um preço incalculável. Essa busca pela autenticidade nas confidências que nos deixa, é uma luta também contra a mentira e o encobrimento que a vida social executa em nós:
“Great is the power of the ‘we’, almost inescapable its bonds, and the only thing we can really do is to hope our ‘we’ is a good ‘we’.”
Mesmo que seja necessário para o indivíduo o mundo social, essa “cultura” – forma de pensar e fazer – que enforma uma “moral” maioritária, este debate-se sobre a possibilidade de o “eu” ser “eu” no “nós” e como este o molda, e vice-versa. Neste contexto, explica como a ideologia pode esmagar a individualidade e tornar-se totalitarismo, num exemplo da Suécia:
“Equality was the supreme principal, and one of the consequences was that expressions of the singularly Swedish were seen as exclusive and discriminatory, for which reason they were shunned. When it came to religion, one had to treat carefully, church had long since been separated from state, and now things had got to the stage where priests no longer mentioned God or Jesus or the Bible when addressing schoolchildren, since this could cause offense to the many who came from Muslim homes. It was this same ideology, hostile to all difference, that could not accept categories of male and female, he and she. Since han and hun are denotative of gender, it was suggested a new pronoun, hen, be used to cover both. The ideal human being was a gender-neutral hen whose foremost task in life was to avoid oppressing any religion or culture by preferring their own. Such total self-obliteration, aggressive in its insistence on levelling out, though in its own view tolerant, was a phenomenon of the cultural middle class, that segment of the population which controlled the media, the schools, and other major institutions of society, and it existed, as far as I could tell, only in northern Europe. But what did this ideology of equality actually entail? (…) Oh, how then, for crying out loud, can we make the lives we live an expression of life, rather than the expression of an ideology?”
O último filme de Todd Philips, “Joker”, apresenta-nos precisamente uma personagem parecida ao do ditador alemão nalguns traços. Joker e o caos que criou tem antecedentes. Mas o relato da vida de Hitler não chega para explicar o terror a que o mundo assistiu a seguir. Havia uma “cultura” que o permitiu, pessoas que o ouviram e aplaudiram e o elegeram democraticamente.
Em tempos de uma “globalização da indiferença”, como dizia o Papa Francisco, e de mudanças sociais rápidas, alguns ficam para trás e quem capta o ódio e ressentimento destes “últimos” e encontra bodes expiatórios, usando uma comunicação simplista, pode encontrar audiência e um apoio para governar. Onde vimos isto no mundo atual?
Não me parece que este livro seja sobre Knausgaard, os totalitarismos, nem sobre a literatura, ou um repositório de erudição, que o é também, ou “sobre” o que seja. A grande literatura é “sobre” muitas coisas, mas também sobre aquele prazer indizível que temos apenas no ato da leitura e na sua partilha, as emoções e conhecimento que nos enriquecem e tornam a vida mais suportável.
Bibliografia:
Aristóteles (2018). Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Knausgaard, K.O. (2011). My Struggle (Book VI). Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux.
Twain, M. et al. (1897). Following the Equator: A journey around the world. (Mark Twain.)