1 No meu texto anteriormente publicado no Observador sobre esta mesma matéria, desejei, entre outras subversões de lugares-comuns, pôr em crise a tese de que a eutanásia, ou o suicídio assistido, como regulados no modelo de legalização que importámos do Benelux, constituam expressões da autonomia do indivíduo. Considerei-os, mais apropriadamente, expressões de poder médico. Considerei-os, ainda, e indissociavelmente, o termo de um processo de diluição da autonomia, por transferência da responsabilidade moral e da execução da morte, no interior de uma estrutura de facilitação e, logo, de incentivo ao intento suicida. Permito-me, neste que se lhe segue, a dúvida sobre outro dos lugares-comuns de apologia: que a legalização da eutanásia tenha sido feita em termos excepcionais e restritivos; ou mesmo que possa ser realizada em tais termos.
2 A ideia de que as condições de prática da eutanásia devem ser rigorosamente definidas foi uma preocupação formulaica de todos os projectos-de-lei que estiveram na raiz da lei em vigor. Nos mesmos se pode ler, por exemplo, que «importa (…) assegurar particular rigor na definição das condições em que essa decisão [de morrer e de matar] é tomada» (Grupo Parlamentar do PS); que a despenalização da eutanásia deve ser feita em «condições muito bem definidas» (Grupo Parlamentar do PEV); que a eutanásia deve operar «dentro de um quadro legal rigorosamente delimitado», proclamando-se em sequência que «importa, pois, legislar (…) definindo com rigor as condições e os requisitos a preencher pela pessoa que peça a antecipação da morte para que o seu pedido seja atendível» (Grupo Parlamentar do BE). Neste mesmo jornal, em 2022, uma das invariáveis subscritoras dos projectos-de-lei do Grupo Parlamentar do Partido Socialista nesta matéria, a deputada Maria Antónia Almeida Santos, asseverava que a eutanásia, cuja legalização então apenas se projectava, se reservaria a «situações excecionalíssimas».
Como se vê, as garantias foram plúrimas e solenes. Impõe-se, aos espíritos críticos, indagar se são fundadas.
3 Aquela que se pode reputar como a principal norma habilitante da lei em vigor, consta do n.º 2 do artigo 3.º: «Considera-se morte medicamente assistida não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.»
Os conceitos de «sofrimento intolerável» (ou de «grande intensidade»), «doença grave», «lesão de gravidade extrema», são abstractos, como, tipicamente, são os conceitos normativos: prescindem da consideração das características concretas das situações da vida e podem, por esta razão, universalizar-se, ou seja, constituir fundamento de uma generalização. São, para mais, como os mesmos subscritores dos projectos-de-lei concernentes reconhecem, conceitos indeterminados. Na constelação conceptual do Direito, os conceitos indeterminados são aqueles cujos significados e limites não são precisos. Num livrinho cuja leitura se sugeria a todos os estudantes do primeiro ano na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, caracteriza-os Engisch da seguinte forma: «conceitos cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos». [1] Se é verdade que os conceitos indeterminados na hipótese das normas servem a sua desejada maleabilidade, isto é, a adaptabilidade da sua razão de ser a uma indefinida extensão de casos concretos, cuja diversidade os legisladores não estão em condição de antecipar, é também verdadeiro que, na mesma medida, as normas que os integram convertem-se em instrumentos mais instáveis e mais imprevisíveis na sua aplicação. O legislador, empregando previsões normativas indeterminadas, abdica de uma considerável medida de controlo sobre a amplitude e variabilidade da sua aplicação. É por esta mesma razão que o legislador deixa de poder garantir uma pretendida aplicação estrita e excepcional do regime legal.
Em consequência, os conceitos indeterminados são intrinsecamente inadequados enquanto conceitos centrais de previsão num regime que se deseja de aplicação estrita e excepcional. Existe uma contradição patente entre o emprego de conceitos cujos limites não se divisam com clareza e a pretensão de que a sua aplicação se confinará a estreitos limites; entre a mesma natureza do instrumento legal, enquanto composto de elementos indeterminados, cercados de um halo de significado impreciso, e a pretensão de preservar a sua aplicação a «situações excepcionalíssimas».
Existe, pois, uma contradição entre as proclamações dos legisladores e a forma do legislado.
4 A experiência da legalização da eutanásia nos Países Baixos e na Bélgica corrobora a conclusão já propiciada pela forma da lei. As leis desses países, que nos serviram de modelo, incorporam os mesmos conceitos indeterminados de «sofrimento intolerável», etc. Mais de vinte anos da sua vigência mostram que tais normas, ao invés de confinarem a aplicação da eutanásia (ou do suicídio assistido) a situações excepcionais, acomodaram muito rapidamente uma aplicação muito extensa. Esta extensão manifesta-se, primeiramente, no rápido, elevado e sustentado incremento do número de eutanásias (ou suicídios assistidos) verificados desde o primeiro momento de vigor das leis; e, depois, na inclusão sucessiva de categorias de casos que, no momento da aprovação, não figuravam no debate público como casos paradigmáticos.
Nos Países Baixos, o número anual de eutanásias e suicídios assistidos, comparativamente a 2002, mais do que quadruplicara em 2022 [2]. Este número não toma em consideração aquelas práticas médicas que determinam a morte do doente, em muitos casos com deliberação, em muitos casos sem o consentimento do paciente, mas que são qualificados pelos médicos responsáveis como sendo de «sedação paliativa» ou «terminal» ou de suspensão de «tratamento fútil» – um ponto relevante, uma vez que os registos de eutanásias desses países assentam no relatório e qualificação facultados pelos médicos executantes. Esta mesma prevenção vale para a Bélgica, que em 2023 registou um novo máximo de eutanásias reportadas; um número que corresponde a catorze vezes e meia o número registado no primeiro ano integral de vigor da lei, 2003 [3]. São elevadas e consistentes as taxas de crescimento do número anual de eutanásias (e suicídios assistidos) em cada um destes países; como regra geral, cada novo ano estabelece um novo máximo histórico: veja-se, por exemplo, a tendência determinável nos dados disponíveis para os últimos três anos com registos publicados. Nos Países Baixos, face a 2019, o número cresceu 9.1% em 2020; de 2020 para 2021, 10,5%; de 2021 para 2022, 13,7%. Na Bélgica, comparativamente a 2020, aumentou 10,39% em 2021; de 2021 para 2022, 9,95%; em 2023, 15% face a 2022.
5 Mas não só os números: a prática da eutanásia e do suicídio assistido estendeu-se a géneros de casos muito distantes das imagens tipicamente extremas que são evocadas para justificar a legalização: ou seja, dos chamados casos paradigmáticos. Ouçamos, ou leiamos, a vozes autorizadas. «Em 30 anos, os Países Baixos progrediram da eutanásia para doentes terminais para a eutanásia para os que são doentes crónicos; da eutanásia por a doença física para a eutanásia por doença mental; da eutanásia por doença mental para a eutanásia por angústia psicológica – e, neste momento, para a eutanásia somente em razão de a pessoa ter idade superior a 70 anos e estar “cansada de viver”. Os protocolos de eutanásia neerlandeses progrediram também da exigência de pacientes conscientes que facultem consentimento expresso para pacientes inconscientes, incapazes de expressar consentimento.» [4] Esta conclusão estende-se à Bélgica, cuja experiência concede razões a um eticista para declarar: «Existe evidência de que a eutanásia, uma vez legalizada, tende a desenvolver uma dinâmica própria e a estender-se para lá das restrições estabelecidas, apesar das explícitas garantias iniciais de que tal não aconteceria – na Bélgica, estas garantias foram reiteradas durante o debate da lei de 2002.» [5] Outro observador atento da experiência belga escreve palavras que parecem escritas para desmentir as garantias da deputada Almeida Santos: «Desde que a eutanásia foi legalizada na Bélgica, em 2002, a experiência demonstra que é uma ilusão acreditar que a eutanásia pode ser permitida como uma prática estritamente circunscrita, excepcional e bem delimitada à qual se aplicam “condições exigentes” e um controlo rigoroso. Uma vez legalizada a eutanásia, as condições limitativas estabelecidas na lei acabam por cair, uma por uma, e parece praticamente impossível manter uma interpretação estrita das mesmas e prevenir a extensão da aplicação da lei.» [6]
6 Muitas pessoas, desde sempre, são induzidas a apoiar a legalização da eutanásia pela consideração deste ou daquele caso trágico. Um célebre exemplo, que a tantos impressionou, é o de Ramón Sampedro, levado à atenção das audiências internacionais em 2004, pelo filme Mar Adentro, que recria a história da sua vida, e da sua morte. Pela evocação de histórias trágicas como esta, muitos são movidos por um natural e compreensível sentido de compaixão a transitar para o favor à legalização da eutanásia. Creio, porém, que esta transição é a conclusão de um argumento inválido, se se considera devidamente o problema que se discute. Como escreveu o penalista estadunidense Yale Kamisar, que tão profusamente discorreu sobre a questão: «A aprovação de uma lei autorizando e regulando o suicídio assistido ou a eutanásia suscita problemas que, com probabilidade, escaparão à atenção quando o assunto é debatido em termos do que se deveria fazer num caso dramático, individual (e relativamente raro).» [7] Desde logo, o argumento haurido dos exemplos extremos carece de força para, por si, justificar a promulgação de uma lei alicerçada em conceitos abstractos e indeterminados, porque estes, de forma inevitável, acomodarão toda a sorte de situações, mesmo aquelas muito distanciadas do carácter reconhecidamente extremo de tais casos.
7 Quando se confronta a empresa de legislar a eutanásia, parece estar vedado o caminho do meio: na prática, a escolha é entre uma de duas resoluções contrárias. Ou se proíbe, sem excepção, a eutanásia, construindo respostas sociais alternativas ao problema do sofrimento crónico ou terminal; ou se admite a eutanásia, cercando-a de restrições ilusórias, efémeras, reconhecendo a sua impotência para obstar à difusão da prática. Ou nada – ou, no fim, tudo.
A eutanásia, pois, mostra-se ilegislável, se atendermos aos termos em que o legislador definiu o seu projecto: porque o propalado equilíbrio entre os conceitos de previsão indeterminados e a garantia de um regime estrito e excepcional é inexequível. Não tem de se encontrar, nesta circunstância, ocasião de espanto: embora a lei mereça na nossa era um culto idolátrico, e frua da fama de uma plasticidade omnímoda, que toma todas as questões por legisláveis e justifica a submissão aos parlamentos de todos os espaços antes abandonados à liberdade, a lei é tão só um instrumento, com uma natureza própria e os inerentes limites.
Bom é, pois, que se cuide do que há de radical na escolha feita no presente: e a escolha, que recaiu antes entre reprovar ou aprovar a lei, é agora, para quem goza da oportunidade, entre mantê-la ou revogá-la.