Em declarações à Rádio Renascença, no passado dia 26 de Junho, o Cardeal-Patriarca de Lisboa disse que os juízes norte-americanos cumpriram a sua função, quando “o Supremo Tribunal considerou que, lendo bem a Constituição dos Estados Unidos e as várias emendas”, não há bases jurídicas que permitam sustentar um pretenso direito constitucional ao aborto. Ainda a este propósito, D. Manuel Clemente comentou: “Essa é a função de um Tribunal Constitucional”.

Durante quase meio século, o aborto foi considerado, nos Estados Unidos da América (EUA), como um pretenso direito constitucional e até mesmo, pelos grupos radicais, como mais um direito humano.

Se se tem em conta que, cientificamente, o nascituro é um ser humano, a institucionalização do aborto é, de facto, a consagração de um inverosímil direito ao homicídio. É certo que, antes do nascimento, o nascituro não está completo no seu desenvolvimento. Mas também não é menos certo que, depois de nascer continua em fase de formação, o que não significa que não seja humano, ou que a sua vida não seja digna de protecção legal.

Neste sentido, era previsível que, mais cedo ou mais tarde, os EUA revertessem a sua política pró-aborto, não apenas pelas razões de ordem científica que ninguém, intelectualmente honesto, se atreve a negar, mas também por questões de ordem jurídica, pois é missão do direito defender a justiça e a dignidade, sobretudo dos seres humanos mais frágeis e carentes dessa protecção, como são os que ainda não nasceram.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os juízes do Supremo Tribunal dos EUA não decidiram esta questão em função das suas convicções políticas ou religiosas, mas das suas competências jurídicas. Ou seja, o alegado direito ao aborto não decorre da Constituição dos EUA. Portanto, mesmo que a maioria dos juízes seja, no futuro, partidário do aborto, esta decisão não pode ser alterada. Graças a esta tomada de posição, muitos Estados norte-americanos reviram a sua legislação, optando por uma política de defesa da vida e de apoio à maternidade.

Cinquenta anos de activismo ‘pro-life’ nos EUA começam agora a dar frutos ao nível da União, não obstante o Presidente Joe Biden ser pró-aborto, como também a ‘speaker’ do Congresso, Nancy Pelosi, igualmente democrata. Ambos, embora baptizados na Igreja católica, estão, por esta sua escandalosa atitude, em situação de ruptura e, por isso, vários bispos norte-americanos já lhes negaram a comunhão eucarística.

Tendo em conta a transcendência mundial deste pronunciamento do Supremo Tribunal norte-americano, D. Manuel Clemente aproveitou para relançar, no nosso país, a questão do aborto, contrariando aqueles que pensam, erradamente, que este tema está resolvido. Se está, está muito mal resolvido: a Igreja, precursora na defesa dos direitos humanos, sobretudo dos mais carenciados, não pode abandonar esta causa humanitária, que São João Paulo II impulsionou com a encíclica “O Evangelho da vida”.

O Patriarca de Lisboa, partindo do exemplo norte-americano, pediu que também no nosso país se siga a Constituição: “No que diz respeito a Portugal, aquilo que eu penso como cidadão e imediatamente como católico é que se cumpra o artigo 24 da Constituição da República Portuguesa, tal e qual como os constituintes quiseram que ficasse, assim a seco: ‘a vida humana é inviolável’.” E acrescentou: “A vida humana é inviolável, é a partir daqui que nós temos que resolver os problemas e não contra esta afirmação constitucional”.

Não se pense que a atitude do Patriarca manifesta insensibilidade em relação ao drama das gravidezes indesejadas, das mulheres que foram vítimas de violação, ou das que conceberam um filho com graves malformações. Contudo, a solução para esses males não pode ser um mal ainda maior, como seria certamente a eliminação de uma vida inocente. Como disse D. Manuel Clemente, há que resolver o problema da gravidez indesejada de acordo com a nossa Lei Fundamental: “Há problemas? Há. Gravidezes indesejadas? Há. Casos dificílimos? Há. Mas a nossa função como sociedade, para cumprir o que vem nesse artigo da Constituição, é ajudar a resolver os problemas, não é aumentar esses problemas juntando um mal a outro mal”.

A Igreja sabe do que fala, quando se trata de ajudar mulheres em risco e recém-nascidos, porque o faz através de inúmeras instituições sócio-caritativas. O Patriarca deseja que, nesta acção social, haja convergência entre a Igreja e o Estado: “vamos tentar estar junto dessas pessoas, prevenindo tanto quanto possível essas situações e depois dando uma ajuda eficaz, como várias organizações da sociedade civil o fazem”.

Em relação ao processo de legalização da eutanásia no nosso país, o Cardeal também teceu algumas críticas. “Neste processo legislativo” – disse – “infelizmente, não se tomou em devida conta aquilo que os diretamente tocados por esse assunto, médicos, enfermeiros, os próprios juristas, na parte que diz respeito ao Direito, têm dito”. A este propósito, recordou as reservas do Conselho de Ética para as Ciências da Vida, que a Assembleia da República também ignorou. Aos deputados que tão apressadamente aprovaram, na generalidade, a legalização da eutanásia, deixou uma pergunta: “Porque não se tem em conta aquilo que as organizações da sociedade civil, com uma grande unanimidade, têm dito? Já para não falar naquele comunicado conjunto que os sucessivos bastonários da Ordem dos Médicos fizeram sobre o assunto”, sendo unânimes no seu repúdio.

Para o Patriarca “as instituições políticas são fundamentais num país democrático, mas não funcionam por si próprias, mas em ligação com a sociedade civil“. D. Manuel Clemente criticou o facto de o Parlamento não ter tido em conta as Ordens profissionais: “Avança-se como se elas não tivessem dito nada e manda-se, depois, para a consciência de cada médico, cada enfermeiro, cada profissional de saúde, uma decisão que é contrária àquilo que as respetivas Ordens têm dito?!”. E, a modo de conclusão, pede: “Pensem duas vezes”. Tendo em conta que a Ordem dos Médicos não irá indicar nenhum profissional para a comissão de avaliação, prevista no projecto de lei de despenalização da morte ‘medicamente’ (?!) assistida, o Cardeal supõe que o Presidente da República, que considera “uma pessoa altamente responsável”, irá enviar este diploma para o Tribunal Constitucional.

O aborto não é a mal-dita interrupção voluntária da gravidez, porque não é voluntário para a vítima e a gravidez não é interrompida, mas definitivamente eliminada, pelo extermínio do feto. No entanto, seria bem-vinda a interrupção voluntária do processo de legalização da eutanásia, também com efeitos definitivos. O mesmo se diga da lei que liberaliza o aborto e que é, sem exagero, uma contradição científica e uma aberração jurídica: uma lei tão malformada que bem se poderia dizer que é um aborto de lei.