A Bélgica tornou-se, no final da semana passada, o primeiro país a impor uma quarentena (21 dias) para quem tenha a Varíola dos Macacos. Esta decisão ocorreu quando foram registados os primeiros casos no país e no final da primeira semana de registos de casos no mundo. A primeira nota que gostava de dar refere-se à forma e ao “tom” do comunicado do governo belga. O anúncio das medidas de restrições impostas menciona um “surto no país relacionado com um festival gay conhecido como Darklands”. Como diria um dos meus bons amigos, “está tudo errado com esta frase”.

Comecemos pela expressão “surto”. Na altura do comunicado o referido “surto” era composto por… três pessoas. Eu confesso que fui ler uma segunda vez para garantir que não seriam três centenas, mas efetivamente era um surto de três. Eu sei que as pessoas se controlam pelo medo, porém, e porque as palavras têm efetivamente impacto, devíamos ser intolerantes com expressões abusivas que apenas servem o propósito de manipular a opinião pública e lançar o medo nas pessoas. Em segundo lugar, a associação da doença à comunidade gay, é excessiva e perigosa. Não está em causa que se deve, por uma questão de prevenção e saúde pública, identificar a origem. O que não se pode fazer é criar um estigma sobre uma parte da população, que, ainda por cima, não corresponde à realidade.

Numa análise mais cuidada a esta decisão, sou tentado a fazer comparações com o objetivo de conseguir perceber a racionalidade por detrás de uma tão dura restrição. Atualmente, na Europa, a quarentena por Covid está nos 7 dias. Como explicar que uma doença que, efetivamente, mata, tem uma moldura de prevenção de um terço do tempo quando em comparação com uma que provoca erupções pelo corpo e tem uma taxa de mortalidade de cerca de 1%?

Histeria coletiva ou razões para alarme

Atualmente, a abertura dos telejornais apresenta três temas: guerra, covid e varíola dos macacos. Há uma macabra contagem diária que coloca em suspense toda uma população onde se apresenta em sequência o maior horror da humanidade (ou falta dela), o maior flagelo de saúde do último século e uma doença que existe desde os anos 60, que nunca causou nenhuma pandemia mortal e que conta com menos infetados no mundo inteiro que adeptos do Belenenses SAD.

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Importa ressalvar que se trata de uma doença endémica, com um reduzidíssimo risco de vida, com uma transmissão que obriga a contactos prolongados e de proximidade entre humanos e, à data da decisão belga, registava cerca de 100 casos no Mundo inteiro sem qualquer indicação de casos com risco de vida. Ao contrário da Covid, existe um histórico da doença, um conhecimento da sua origem, transmissibilidade, sintomas e consequências.

Neste ponto, gostava de fazer uma nota muito breve, histórica e importante. Tal com o HIV e a SIDA, houve a tentação absurda de associar a doença à comunidade gay. A doença é transmitida por contactos íntimos, à semelhança do HIV e, tal como no caso dos anos 80, vamos chegar à conclusão que quem não é gay também realiza contatos íntimos. A necessidade coletiva de colocar um rótulo discriminatório numa doença é resultado da única doença coletiva que conheço, que não sendo contagiosa, é identificada, essa sim, num determinado grupo da população (felizmente reduzido): a intolerância absurda. Importa mencionar que, tal como o pânico que se gerou e se têm gerado, também a intolerância na sua esmagadora maioria é resultante do medo e da ignorância, e se devemos ser intolerantes com a intolerância devemos perceber como se a deve combater.

Recentrando o foco no tema, é compreensível que a palavra varíola possa causar algum receio. Afinal de contas, trata-se de uma das doenças que mais matou ao longo da história, desde o tempo dos faraós até à sua erradicação há mais de quarenta anos. E essa pode ser a base de partida para uma maior consciencialização da doença. A varíola tornou-se a primeira doença a ser erradicada através de uma política de vacinação mundial que culminou com a confirmação em 1980 por parte da Organização Mundial de Saúde do final desse flagelo.

No entanto, a varíola dos macacos, embora partilhe o nome e alguns dos sintomas visuais, apresenta uma transmissibilidade e mortalidade muito menor, quando comparada com a “varíola dos humanos”. Por ser uma doença com mais de cinquenta anos de conhecimento médico, é bastante estudada e com um histórico onde as chances de transmissão em forma de pandemia são muito reduzidas, sendo uma morbilidade com sintomas muitíssimo mais suaves e muito menos letal.

Aliás, esse conhecimento, permite-nos saber da existência, à semelhança da varíola dos humanos, de dois tipos de varíola dos macacos: a da África Ocidental e a da África Central. A primeira é a mais suave e aquela que está a surgir neste momento na Europa. Sabemos ainda, que os poucos casos de mortes associadas a esta doença, são registados em zonas pobres de África, onde as vítimas sofrem de ausência de condições de salubridade, fome e não usufruem de cuidados de saúde.

Como nota final sobre a doença, não posso deixar de mencionar a ausência de um tratamento efetivo em virtude de nunca se ter dedicado muitos esforços na busca do mesmo. Se por um lado, e como já escrevi, é uma patologia com muito pouco risco e com sintomas moderados ou leves, por outro a esmagadora maioria dos casos estavam em África e, infelizmente, não sendo na Europa ou nos Estados Unidos não existe “motivação” para esse desenvolvimento.

O conhecimento como combate do medo

Confesso que já não sei a quem serve esta histeria coletiva. Se aos governos que através do medo controlam as pessoas, se às farmacêuticas que vendem vacinas como se não houvesse amanhã (e por este andar não vai haver mesmo) ou aos media que vivem de audiências e dramas. No entanto, eu sei a quem não serve. É à população. Os portugueses enfrentam neste momento desafios exigentes resultantes de uma pandemia, uma crise energética, uma inflação galopante e uma guerra. Estes são desafios que podem, em muitos casos, conduzir a crises humanitárias, de saúde mental e resultar em mortes. Estes são desafios que, efetivamente, podem mudar de forma significativa e negativamente o futuro de centenas de milhares de portugueses.

Gostava que os nossos governantes olhassem para estes desafios com sentido de responsabilidade, que falassem verdade e definissem medidas de combate a estes problemas. Que não existisse um pânico absurdo e coletivo – eu bem sei que o medo é irracional e resulta do desconhecido, mas neste caso não há qualquer fator desconhecido – e que a comunicação social desempenhasse um papel informativo e não de pressão coletiva sobre os receios e fragilidades das pessoas. Esta “nova” doença é contagiosa (embora não com um nível sequer semelhante ao Covid ou outros vírus com transmissão por via respiratória) mas é endémica e raramente mortal. Estejamos atentos, tenhamos comportamentos sociais de respeito e segurança, mas não deixemos de viver e foquemo-nos nos enormes desafios que temos atualmente enquanto sociedade.