Dezoito horas de Wagner no ciclo Der Ring des Nibelungen (O Anel do Nibelungo) pode ser um daqueles projectos de vida, “uma vez na vida”, para um amador de ópera medianamente esclarecido.

Na complexidade do libretto das quatro óperas do Ring, Das Rheingold (O Ouro do Reno), Die Walküre (As Valquírias), Siegfried, e Götterdämmerung (O Crepúsculo dos Deuses), desenrola-se uma wagneriana visão da humanidade, dramática e ambígua, que tem suscitado infinitas interpretações filosóficas, centenas de abordagens em cena, interpretações inesquecíveis de divos e divas nos grandes palcos operáticos do mundo. “Uma alegoria da luta de classes? O poder corrupto? A destruição ambiental? Uma reflexão absurda sobre a liderança nihilista?”, são estas questões que um crítico do New York Times se colocou nesta ocasião sobre o Ring.

Estas perguntas são pertinentes para alguém que, como o autor destas linhas, tenha tido uma adolescência influenciada pelas lendas do Rio Reno, dos seus tesouros, do seu ouro maldito, das Valquírias, do poderoso Wotan, das mitologias épicas, do germanismo identitário. Estas quatro óperas que preenchem o Anel do Nibelungo fazem, muitas décadas depois, regressar ao maravilhoso, ao imaginário, e a um futuro presente desenhado num passado mais que perfeito, revestido no fantástico do sonho. Uma experiência transcendente, acabando por ser um trip embriagador e colossal.

Bem conhecidos para quem frequenta as transmissões ao vivo na Gulbenkian, os 3.800 lugares da Metropolitan Opera no Lincoln Centre de Nova York, para as quatro óperas do Ring apresentadas na semana de 6 de Maio de 2019, esgotaram em Outubro do ano passado. Dia após dia foram criadas cumplicidades com os vizinhos de lugar, conversinhas de intervalo, segredos, transmissão de impressões fortes, três dias de aplausos finais de quinze minutos, de gritos entusiastas saídos de muitos wagnerianos enlouquecidos, chamadas sucessivas ao palco, etc. No quarto dia, o do Crepúsculo, chegou-se no final quase aos vinte minutos de entusiasmo incontrolado, com uma produção que gerou polémica na crítica, mas nenhuma detectada entre um público sabedor.

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O Ring foi concebido por Richard Wagner para ser visto de seguida, na sua sequência original. Estreado em 1876 em Bayreuth (e em 1889 em Nova York), nesta produção de 2019 desenrola-se no palco do Met numa “máquina” que pesa 44 toneladas, uns 24 gigantescos sissós colocados a toda a largura do palco que, quando na horizontal e justapostos em paralelo numa das muitas variantes em que se balouça, mais se assemelham a um enorme teclado de piano monocolor. Movimentam-se lado a lado de forma oscilada e imaginativa num eixo que vai variando de altura e de posição, num conjunto onde cenário e actores ficam banhados por uma luminotecnia invulgarmente imaginativa.

Toda esta grandiosidade da produção operática do Met, com orçamentos anuais que excedem os 300 milhões de US$, desenrola-se numa cidade dinâmica ao extremo, em que tudo está sempre a mudar, a inovar, a criar, a recriar, a morrer para imediatamente ressuscitar. Este ano, como se o resto do cenário não chegasse, foi inaugurado The Shed, um colossal “centro de artes” ligado ao Highline da Rua 30, nos Hudson Yards. Trata-se de um vasto espaço com trabalho em progresso permanente, para uma infinidade de usos nas artes visuais e performativas, eventos explosivos de criatividade. A originalidade do conjunto arquitectónico reside numa parte desse espaço, que é retráctil, quinético, uma “concha” que abriga 1.500m2 de superfície e cerca de 25 metros de pé direito  que, conforme as conveniências, se pode expandir ou encolher no edifício mãe, uma “tenda” assente em gigantescas  rodas, adaptável em tamanho a todo o tipo e número de espectadores/visitantes/espectáculos. Um prodígio de tecnologia e de arquitectura.

Um exemplo de originalidade encontrada no Shed foi uma exposição/concerto do pintor alemão Gehrard Richter, apresentada em conjunto com os compositores de música contemporânea Arvo Part (estónio) e o Steve Reich (americano), todos tendo colecionado nas suas carreiras as mais prestigiadas distinções.

Numa das áreas do Shed, num primeiro espaço muito amplo, o público tem de entrar a uma hora determinada, para contemplar as pinturas e as tapeçarias de Gehrard Richter espalhadas por quatro enormes paredes. Inesperadamente, ninguém se apercebendo inicialmente de onde vinha o cantar, escuta-se um belíssimo coro a interpretar uma peça de Arvo Part, que muito fazia pensar em Bach. Eram uns vinte cantores que, misturando-se de forma indistinta com as duzentas pessoas que ali se encontravam, vestidos tão informalmente como todos, vagueavam pelo espaço, confundindo-se com o público, conseguindo uma invejável harmonia interpretativa, e emprestando uma mágica peculiar àqueles momentos.

Passando à seguinte sala, o público recolhe e abre bancos por ali encostados, ou senta-se no chão, escutando o Ensemble Signal, um conjunto de uns trinta músicos intrepretando as peças de Steve Reich. Estas peças musicais post-modernas foram compostas em harmonia com a obra pictórica de Gehrard Richter que, na sala escura, se projectava numa extensa parede. Aí, um lento e harmonioso desenrolar caleidoscópico de uma série de obras suas fusionava-se entre si, numa verdadeira elegia de cor, em que a expressão “audio-visual” apouca a percepção de uma soberana arte mixta que ali se experimentou.

Performativo por excelência, em Nova York, é o teatro, em que a Broadway explode todas as noites em numerosas obras primas. Quem é que tendo lido a icónica obra prima literária de Harper Lee, “To Kill a Mocking Bird” (Pulitzer Prize), não se sente tentado a ir ver a peça teatral extraída do livro, ainda por cima tendo no papel desse complexo personagem Atticus Finch o celebrizado actor Jeff Daniels, que vimos recentemente no filme Steve Jobs?

No intervalo, e apesar de ter lido o livro duas vezes e recordar a história de trás para a frente, atrevi-me a perguntar a dois ou três espectadores norte-americanos que se sentavam perto, se tinham conseguido perceber tudo o que fora falado em palco na primeira parte. A resposta foi negativa, escapara-lhes talvez metade. Não admira, pois os actores falam entre si com o forte sotaque do Estado onde a acção se desenrola, o Alabama, um inglês difícil de entender para quem não seja nativo de lá o southern drawl). Mas foi consolador reeencontrar na peça as imagens para que o livro arrasta a imaginação do leitor, coisa nem sempre fácil de conseguir nestas adaptações ao teatro ou ao cinema de obras literárias. A peça, na forma e letra, como aborda habilmente os temas rácicos mais pungentes, acaba por ser suportável para os politicamente correctos nestas matérias. E os prémios e nomeações para Daniels e para a peça explicam o sucesso bombástico de bilheteira.

Surpreendente foi ir à bilheteira do Belasco Theatre, na rua 44, para tentar ver Network, com Bryan Cranston (quem não se lembra deste genial actor na série de televisão Breaking Bad?), e para ouvir o empregado do guichet pedir desculpa, “pois só há lugares no palco”.

Seria uma espécie de “galinheiro”? Tive de me apresentar cinquenta minutos antes, entrar pela porta dos artistas, ser atendido pelo homem do bengaleiro (actor), e conduzido para um balcão de bar instalado no palco, virado para a audiência. Um criado (actor) impecavelmente vestido de jaqueta branca, serviu de imediato um excelente Sauvignon Blanc bem fresquinho, e explicou aos oito “clientes” do bar que, durante a peça, ser-nos-ia servido um jantar que, oh mais surpresa! se viria a revelar de elevada qualidade gastronómica… afinal, éramos figurantes, havia que compensar a maçada….

Nos cinquenta minutos que antecederam o início da representação, e ainda com a plateia e os balcões vazios (não viria a caber uma agulha quando a turba encheu o teatro), assistiu-se à preparação física e psicológica dos vários actores, uns no yoga, outros em meditação budista, uns deitados no chão a “uivar” baixinho, outros a disciplinadamente fazerem extensões musculares, alguns vindo trocar dois dedos de conversa descontraída com os figurantes do bar. O cenário era um estúdio de televisão, apropriado à história celebrizada pelo filme do mesmo nome, Network, com o Peter Finch e a Faye Danaway, em que o pivot principal desse canal (neste caso com o papel desempenhado pelo inimitável Brian Cranston), horrorizado com a hipocrisia, a mentira e a corrupção da política e da alta finança que tinha diariamente que abordar, anuncia, logo no princípio da peça, que no programa seguinte se irá suicidar ao vivo e em directo.

Com as brilhantes interpretações e a superior qualidade das peças, da encenação e da direção, sai-se da Broadway gratificado ao extremo, arte no seu melhor. Mas nem To Kill a Mocking Bird, e Network, nem as respectivas estrelas, Jeff Daniels e Brian Cranston, apesar de nomeados, este ano, ainda não ganharam os Tony Awards.

Este Maio Nova York encontrou-se mais uma vez com a afamada feira de arte TEFAF de Primavera, na Armory, local da Madison Avenue onde o Amadeo Souza Cardozo se revelou ao mundo vai para uns 100 anos. Durante quatro dias viram-se ali à venda Picassos, Renoirs, Matisses, Pissaros, Bonnards, van Dongens, Chagalls, Legers, Munchs, e outros génios, às mãos cheias. Alcatifas suaves, mulheres elegantíssimas, homens igual, flores em vasos dignos de figurar num dos Renoirs em venda, carrinhos não de chá, mas de Champagne circulando com suavidade, todos a falarem baixo, uma atmosfera etérea, surreal… E ali, à mão de semear, obras primas da pintura universal às mãos cheias, para serem adquiridas pelos milhares e milhares de americanos possuidores de dólares às centenas de milhões que, com um gesto, ficam com uma ou mais daquelas peças em casa, ao lado da televisão, do cão aos pés, e de um whisky bourbon apenas com uma pedra de gelo…

Em Nova York, este Maio, sentiu-se o vigor da economia, da abundância, e de um progresso imparável. E, na quinta Avenida, a Trump Tower deixada agora ao desinteresse de quem por ali anda, a verdade do mau gosto e da banalidade passou a emergir e a destacar-se.

Maio de 2019