A notícia apanhou-nos a todos de surpresa: os portugueses descobriram que não gostam de turistas. Começou nas conversas de café, à boca de pequena, mas já chegou, sem pudores, às páginas de jornal. Depois de anos de campanhas turísticas a pedir que nos viessem visitar, a dizer que éramos os melhores nisto e naquilo e que tínhamos sol e boa comida e preços baixos, decidimos que, afinal, não era isto que queríamos. Que os preços subiam, que o nosso restaurante estava cheio, que irritava ouvir falar tanto inglês e chinelar por aí.
É curioso que isto nos aconteça. Pergunto-me se nos passarão os mesmos sentimentos pela cabeça de que cada vez que vamos a Barcelona, Londres, Paris, Roma, Brasil, Caraíbas, Seicheles, Índia, Vietname, Tailândia, o que seja. Quando partilhamos as fotografias nas redes sociais, quando nos sentimos muito viajados e sofisticados, quando nos gabamos do número de países que já visitámos e dizemos, vaidosamente, que, assim que aterramos, já estamos a pensar na próxima viagem, será que pensamos que também contribuímos para expulsar catalães, romanos e parisienses do centro? Que também ajudámos a inflacionar dramaticamente o custo de vida para tailandeses, brasileiros e caribenhos? Que o nosso chinelar e desconhecimento da verdadeira língua e cultura de cada país também irritará os locais? Ou acharemos mesmo que fomos a Cancún e ficámos a conhecer o México?
É muito interessante: nós adoramos viajar, mas odiamos turistas. O turismo é, portanto, um elemento químico complexo: benigno quando se está numa ponta da corda; tóxico quando se está na outra. Quando o praticamos, somos cosmopolitas e sofisticados; quando é praticado por outros, é parolo e predatório. O turismo, enfim, devia ser uma estrada de sentido único: de um lado, o mundo à nossa espera e disposição; do outro, o nosso cantinho sossegado para virmos descansar os pés e comer um bitoque ao preço dos anos 80.
Sim. Os portugueses descobriram que odeiam turistas, mas, em princípio, devem ter sido só os portugueses consumidores, ou seja, os praticantes de turismo interno. Porque os portugueses que abriram restaurantes, cafés, bares, pequenas lojas e negócios não costumam dizer o mesmo. Nem os guias turísticos, nem os que transformaram imóveis de família em alojamentos locais para conseguirem um complemento ao rendimento, nem os que alugam carros, motas, bicicletas, barcos, nem os que têm ou trabalham em hotéis, casas de fado, tuk-tuks ah-os-horríveis-tuktuks-que-coisa-de-pobre, nem os responsáveis por equipamentos culturais, museus, monumentos, festas e festivais. O turismo salvou a economia portuguesa na última década, mas, como é a única coisa que aparentemente funciona no país, os portugueses querem fazer o que fazem de melhor: mandá-la abaixo, que é para ela não ter a mania que é melhor do que as outras.
Sim, os portugueses. Esses que se gabam de terem navegado pelo mundo inteiro e serem muito dialogantes, de onde quer que se chegue encontrarem sempre pelo menos um deles, que têm os maiores níveis de emigração da Europa e os oitavos do mundo. Descobriram agora que, afinal, o que era bom era quando o Chiado era só deles – quando lhes apetecia lá ir. (Perdoe o leitor ao cronista concentrar-se nos exemplos de Lisboa, que ele melhor conhece. Por favor, substitua mentalmente pelos lugares da sua região que sinta equivalentemente transformados). Descobriram que os alojamentos locais lhes roubaram as casas, como se o Rossio não estivesse deserto há 20 anos, crescesse mato nos telhados e janelas partidas dos prédios da Praça da Figueira, metesse medo caminhar na Rua Augusta depois das seis da tarde ou não tivessem todos migrado, há muito, muito tempo, para a Amadora, para Loures, para Cascais, para Odivelas, para Mafra, para Oeiras, para Sintra, para Alverca, para Almada, Seixal, Barreiro, Montijo, onde quer que que pudessem ter casas grandes, novas, com elevador e garagem e não aquelas casinhotas velhas que desprezavam em Alfama ou na Mouraria e onde além do mais, horror dos horrores, era impossível estacionar.
Na verdade, estes portugueses, e os lisboetas em especial, continuam a ser apenas e só isso mesmo: portugueses, logo saudosistas. Mas temos uma notícia triste para lhes dar: a Lisboa de que têm saudades já não existia há muito, muito tempo. Provavelmente, nunca viveram nela. Porque a Lisboa que havia antes da explosão turística não era esta que hoje vêem, simplesmente com portugueses em vez de turistas; era uma onde os bairros antigos estavam abandonados e não havia dinheiro para recuperar os imóveis; a Almirante Reis era um deserto à noite, o Largo do Intendente um faroeste onde adolescentes africanas se prostituíam em plena luz do dia. As lojas “históricas”, cujo fecho hoje todos lamentam nas redes sociais num clamor despeitado que dura 24 horas, há muito tinham sido trocadas pelos grandes centros comerciais na periferia. O Cais do Sodré tinha uns bares de marinheiros, não a rua cor-de-rosa. Não havia público, ou então não havia interesse, ou então não havia investimento que justificasse rooftops nos prédios, nem quiosques em todas as praças, nem esplanadas junto ao rio. O Fontória, ali à entrada da Praça da Alegria e do Parque Mayer, era um bar de alterne de péssima fama, em vez do Red Frog, que hoje disputa um lugar entre os melhores bares do mundo. Sim. Lamento imenso estragar as vossas recordações. A gentrificação não poupa mesmo nada nem ninguém.
Em suma: os portugueses, seguindo as mais recentes tendências internacionais (ah, a ironia) descobriram que o turismo faz subir os preços e que os turistas fazem muito barulho. E mais extraordinário ainda: descobriram que a economia não deve ficar dependente de um só sector. Mas quem sabe – pensem lá nesta ideia louca – se não seria melhor ideia desenvolver também os outros sectores, em vez de tentar minar o único que cresce? Quem sabe se não é isso que Espanha, Reino Unido, França ou Itália fazem, com muito mais turistas do que nós, mas muito menos dependentes deles? Quem sabe se não será melhor pensar em como funciona a mais básica lei da oferta e da procura e que, portanto, enquanto houver procura turística haverá oferta, se não aqui, noutro país qualquer? Quem sabe se queremos mesmo ficar de fora disso tudo, orgulhosamente sós 2.0? Quem sabe, enfim, se os desconfortos provocados pelo turismo não são compensados pelos benefícios?
Talvez possamos meditar nisso nestas férias, numa qualquer praia tropical ou nessa Nova Iorque que todos nós, sofisticadíssimos cidadãos, adoramos por ser um melting pot feito dos contributos de irlandeses, italianos, chineses, judeus, portugueses, hispânicos, gente de toda a parte – ou se gostaríamos talvez de correr com eles e deixá-la só aos americanos.
É que isto dos turistas é muito bom, mas, por favor, mantenham-se longe do meu quintal. Não podem só mandar o dinheiro? Isso é que era tabaco.