No início do século XX, Halford Mackinder defendia que o centro da dominação mundial pertenceria um dia ao Estado — o ‘Estado pivot’ — que fosse capaz de ocupar a Eurásia. Antes do tempo, o teórico geopolítico colocava a hipótese de não ser a Rússia, mas sim a China — a mando japonês, é certo — a ocupar essa região, acrescentando à sua frente marítima os recursos terrestres da grande massa intercontinental, um feito que os russos não haviam ainda alcançado.
Com as devidas reservas face à rígida contraposição da geopolítica clássica entre as valências terrestres e marítimas dos Estados — que a história veio a revelar obsoleta —, a ideia do controlo de toda a heartland da Eurásia como fundamental para afirmação global de uma potência ali situada encontra na Belt and Road Initiative de Xi Jinping uma poderosa caixa de ressonância. A trajectória ‘Belt’ desta grande estratégia geo-económica chinesa atravessa toda a Ásia Central, passa pela ‘nova Ucrânia’ e culmina em Moscovo e em várias cidades da Europa Ocidental.
Ora, a recente invasão da Ucrânia aparenta ser um bloqueio deste vector terrestre. Os chineses tinham vindo a investir milhões nas infraestruturas de cidades como Odessa, Chornomorsk ou Izmail. Em Kiev, por exemplo, a quarta linha do metro estava em construção pela China Pacific Construction Group, financiada quase por inteiro por um banco chinês. Sendo certo que a agressiva expansão empresarial chinesa é sempre indiferente aos regimes políticos dos países em que investe, também não é menos verdade que esses investimentos recaem normalmente em infra-estruturas de grande significado sócio-económico, precisamente aqueles que se tornam um alvo militar prioritário para um invasor. Portanto, a China está a perder muito dinheiro com a invasão — e perderá ainda mais com o fracasso antecipado da ocupação que inviabilizará mais negócios naquele país no médio prazo.
A questão que se coloca, portanto, é se a China obtém algum ganho político com todo este custo económico. Das duas uma: ou Putin prometeu a Xi Jinping uma invasão fácil, rápida e sem contágio regional; ou não, e sentirá em breve a resposta de Pequim ao bloqueio inusitado do avanço económico chinês por todo o sul da heartland ou ‘área pivot’ — cujo controlo Mackinder considerava decisivo. Putin pode estar a comprometer a sua ‘parceria estratégica’ com o ‘grande amigo’ chinês. Como a Ucrânia não recebeu os russos de braços abertos — quelle surprise — a desestabilização do Leste Europeu é uma afronta directa ao legado geo-económico que Xi Jinping quer deixar para o ‘futuro brilhante’ da nação.
Por tudo isto, a reacção chinesa à invasão será decisiva para o futuro do sistema mundial. Pequim teve sempre uma agenda política apostada no recuo do liberalismo ‘político’ internacional assente no estado de direito, na auto-determinação dos povos ou no respeito pelos direitos humanos das minorias. Mas do ponto de vista económico, e ao contrário da Rússia de Putin, a China foi mais beneficiada do que prejudicada por essa ordem. O gigante chinês depende em grande medida de uma ordem internacional que não criou e que muitas vezes o excluiu — mas que é,ao mesmo tempo, a pedra basilar do seu sucesso económico. Foi nos ombros da estabilidade geopolítica e da interdependência económica de raiz ocidental que a China se tornou num sucessor à altura da pax americana.
Hoje, manter essa posição cimeira passa, entre outras coisas, por garantir a estabilidade de toda a cintura sul da Eurásia. Xi Jinping pode ter anuído no controlo by proxy da Ásia Central e do Leste Europeu, procurando obter garantias de que Putin traria ordem a essas regiões. Para o presidente russo, esse fim parece ter justificado os meios em muitas frentes. Essa Rússia dominadora seria instrumental para a China se tornar no novo ‘Estado pivot’ global, cabendo aos russos o papel estratégico de grande frente ocidental da expansão económica terrestre chinesa, assegurando à China a exploração daquelas regiões e de recursos naturais que o seu território não oferece.
Mas a grande Rússia de Putin só é vantajosa para a China se ela permitir o progresso da agenda económica chinesa. O domínio tem de trazer estabilidade. Ora, Putin pode estar a tornar-se num obstáculo ao avanço da China sobre o ocidente — e isso vale mil vezes mais do ponto de vista global do que toda a excitação mediática em torno de uma suposta reunificação europeia. O presidente Putin pensou que, com a Europa dividida e uns Estados Unidos distantes e traumatizados pelo Afeganistão — como os russos o foram um dia —, a Ucrânia seria convertível numa segunda Bielorrússia. Enganou-se. Com uma ocupação que se adivinha muito difícil, a ideia de uma Rússia como braço direito da hegemonia chinesa a estender-se até ao ocidente pode cair por terra. Pequim já terá começado a perceber que o seu proto-vassalo tem intenções profundamente disruptivas da ordem económica global que poderão fazer ricochete na economia chinesa.
De facto, os dois países tinham vindo a desenvolver iniciativas conjuntas que consubstanciam um rapprochement inédito. Para além das sinergias tecnológicas e infra-estruturais, realizaram exercícios navais conjuntos no Pacífico, no Ártico e até no Báltico. O exercício militar “Vostok 2018” juntou na fronteira siberiana milhares de tropas russas e chinesas. E como já estamos a ver pelas sanções, a superpotência nuclear pode socorrer-se do seu parceiro para se manter à tona do ponto de vista económico, sendo expectável o recurso a mecanismos alternativos de interação financeira e comercial que flanqueiam as plataformas e os fóruns internacionais tradicionais.
Por todas estas razões, a guerra actual parece estar em contra-ciclo com a Belt & Road. A invasão da Ucrânia pode estar a transformar o estender de mão chinês à Rússia num abraço de urso. A quarentena a que o ocidente continuará a sujeitar Moscovo — se for persistente — reforçará a sua dependência excessiva face a Pequim. Nessa ‘parceria’ estratégica, a divisão do trabalho será muito desigual. Os vastos recursos energéticos russos podem voltar a obrigar os Estados europeus a tornarem-se mais susceptíveis às pressões comerciais chinesas. Mas essas incursões geo-económicas na Europa requerem uma previsibilidade geopolítica que Putin já não garante. O ataque à Ucrânia é um erro de cálculo que enclausura Moscovo num bandwagoning com Pequim que dilui a relevância geopolítica global da Rússia como ‘grande ponte’ entre a China e o Ocidente.
Mais, o isolamento da Rússia pode condenar o país a uma gradual ‘orientalização’ sem retorno. O que a invasão da Ucrânia mostra é que o revisionismo russo é prosaico e mais anti-sistema do que o chinês. Como refere Charles Kupchan, o revisionismo russo é perigosamente perturbador de uma ordem global que vê como claramente antagónica à sua identidade; O revisionismo chinês é expansionista na periferia, mas orientado para a preservação do status quo a nível mundial. No fundo, a ordem liberal internacional é muito mais benéfica para Xi Jinping do que para Putin.
Os americanos sabem-no. Biden tentará descolar a Rússia da China, pressionando Pequim a condenar Moscovo. Essa grand strategy (para a década) terá um custo político mais alto do que no tempo de Nixon: ela sugere que só a partilha da liderança mundial com os chineses pode colocar em cheque os desmandos de Putin. Para já, a polarização entre autocracias e democracias que muitos anunciam aponta de facto para um sistema bipolar internacional.
Mas essa bipolaridade será um intermezzo. Os Estados Unidos não sairão vencedores de uma segunda guerra fria. A contrariedade económica da invasão para os chineses aporta-lhes um ganho político óbvio: se a exclusão do governo russo da sociedade internacional fizer da China a única mediadora credível do conflito na Ucrânia, Pequim irá aproveitar para se reposicionar no sistema como árbitro. Um passo essencial para um dia se consagrar como o primeiro hegemon não-ocidental da ordem mundial.
Mackinder tinha razão: nem os russos conseguiram. Peter Frankopan recorda um antigo ditado chinês que diz que ‘o talento para seguir a maneira antiga não é suficiente para melhorar o mundo de hoje’. A passadeira vermelha está estendida. Há males que vêm por males maiores.