Num artigo de 2001 em que se apresentava como campeão da marcha imparável dos direitos humanos contra o comunismo, Kissinger introduzia uma vírgula no que via como o importante avanço do direito penal internacional: um galopante justicialismo global capaz de instituir uma ‘tirania dos juízes’. O diplomata alertava então para a urgência de ver protegidos os direitos legais e as garantias processuais dos acusados. Contra a judicialização da política internacional – por via do princípio da jurisdição universal do Tribunal Penal Internacional – concluía com a proposta de fazer depender a investigação e denúncia de alegadas violações de direitos humanos, imagine-se, do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Quelle surprise.

Navegou como poucos os rios de sangue que percorrem as margens do ‘império benevolente’. Nunca conheceremos todas as atrocidades que autorizou; mas as que nos chegam do Oriente valem mais que mil Allendes assassinados. Do alto do panótico oval que partilhou com inúmeros presidentes americanos fechou sempre os olhos ao que se passava nas infindáveis quelhas da nova Roma, quais danos colaterais do destino manifesto da América no Pacífico.

Devemos-lhe, é certo, uma boa parte da imunização do mundo árabe e da descolonização africana contra o contágio comunista que a célebre ‘cartada chinesa’ ajudou a quebrar. Mas a consolidação da maior hegemonia global da história terá custado mais vidas ao sul do que muitos impérios europeus.

Mas ao contrário do que afirmam alguns, a brutalidade do ‘sistema Kissinger’ não se deve apenas a uma simples obsessão com o interesse nacional americano. Se é certo que considerava que ao político cabia o dever de ‘agir como se o seu país fosse imortal’, os anos 90 reforçaram a sua convicção de que a hegemonia americana era sobretudo instrumental na prossecução de um bem maior: o da eternização do capitalismo como um meta-regime económico à escala global que reduzia a competição entre grandes potências a uma batalha essencialmente económica e diplomática, e deixava para proxies o confronto militar direto.

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Neste particular, o primado filosófico da zivilisation impôs-se sempre ao da kultur no pensamento político de Kissinger. A ordem europeia tinha depois de Napoleão incorporado um sistema de freios e contrapesos, enfim, de controlo mútuo – não de liberdade. Mais do que condenar infratores, Kissinger acreditava que era necessário conter o cruzadismo moral de ideais absolutos. Com Metternich e Castlereagh, aprendera que a hegemonia só deve existir quando serve propósitos contra-hegemónicos. Ao contrário da esfera doméstica, a segurança na ordem internacional só podia ser alcançada, por isso, pela insegurança permanente dos seus membros. Nessa medida, os critérios morais habituais não podiam servir para julgar a ‘exceção internacional’.

Ao tomar o poder ordenador como critério único de legitimidade, Kissinger seguia Bismarck na convicção de que qualquer ordem internacional é, por definição, legítima – ou não é ordem. A distinção, adaptada de Weber, entre legitimidade e moralidade permitia-lhe imaginar um sistema internacional legítimo, porque amoral – daí a sua reserva de fundo face ao regime dos direitos humanos. Só um sistema destes seria capaz de acomodar mundivisões eticamente incomensuráveis, e até a hipótese de uma liderança não-ocidental.

Não admira que anos mais tarde Kissinger visse na economia de mercado, mais do que no direito, o cimento ideal para proteger as decisões de política externa das ‘massas’ – em linha com o desprezo que já Bismarck manifestara pela soberania popular – e em que as grandes corporações multinacionais podiam comportar-se como autênticas casas reais oitocentistas, com interesse direto numa grand strategy comercialmente expansionista.

Também por isso, via no alegado poder de auto-contrição do statesman uma reserva moral para justificar os atropelos ao escrutínio democrático, resgatando a virtu original dos great men que, como ele próprio, estariam para lá do bem e do mal. Só uma ordem internacional desta natureza poderia ser indiferente às reivindicações de justiça e retribuição vindas dos sacrificados da ‘civilização’.

Se durante a guerra fria Kissinger se guiou essencialmente pela lógica antiga do ‘concerto das nações’, assente num equilíbrio de poder precário e contingente, o pós-guerra fria inclinou a sua realpolitik para o ideal liberal de que a economia globalizada empresta estabilidade externa ao sistema ao tornar as tendências impulsivas das unidades muito custosas e anulando, pelo caminho, o potencial revolucionário dos excluídos a sul.

Nessa medida, Kissinger foi menos o teorizador e mais o obreiro de uma ordem internacional muito assente num modelo económico que pudesse sobreviver, com as devidas declinações, à própria unipolaridade americana – e garantir um sucessor capaz de aprender com os erros de overstretching imperial do passado. Entendia que a continuidade da ordem internacional dependia da sua capacidade em atrelar os mais remotos recantos do planeta ao violento trator civilizacional do capitalismo – tornando-o indispensável para a superpotência que vier.

Face ao interregno do ‘mundo sem dono’ que nos espera, Kissinger procurou sempre posicionar-se não apenas como consiglieri de uma América em queda lenta, mas também como o arquiteto de uma pax americana sem América. Como o próprio dizia, o estadista deve agir como se a sua intuição sobre o futuro fosse já uma experiência do passado. Acreditava que a passagem de testemunho para a China viria tarde o suficiente para esta poder importar o modelo económico mais resiliente e promíscuo da história mundial.

Se foi bem sucedido nesse desígnio só o futuro o dirá. Mas a aposta num capitalismo sem escrúpulo moral como método de integração da maior potência rival não pode, para já, ser excluída como a mais eficaz estratégia de continuidade na rutura. Como afirmava, a bipolarização pacífica com a China trouxe a maior era de crescimento económico de sempre. Por isso, convencer Washington e Pequim de que um não pode nunca dominar o outro seria, segundo ele, ‘a última forma de realismo’.

Resta saber se, com uma vez disse de Bismarck, a tragédia de Kissinger não terá sido a de deixar um legado de uma ‘grandeza inassimilável’. Aos olhos de hoje, nem a maior transição de poder da história justifica o seu lastro de violência. Ao invés, talvez se aplique a Kissinger o retrato que um amigo de Bismarck nos deixou do líder prussiano: ‘ninguém se alimenta impunemente da árvore da imortalidade’. A memória de Kissinger terá sempre o tamanho da sua culpa.