Como cidadão-que-não-é-personalidade assisto como muitos ao debate sobre a justiça, centrado no Ministério Público, na Procuradoria-Geral da República e nos efeitos da sua ação. É um tema sério, que  deve ser pensado no quadro da cidadania e talvez menos por grupos de “personalidades”. Avulta no  debate o Manifesto das 50 (“personalidades”). Fui ler devagar. Aconselho.

Como se costuma referir em trabalhos académicos, o Manifesto (M50) tem coisas boas e novas.  Infelizmente as boas não são novas e as novas não são boas.

O método de produção do M50 é importante e, embora esta descrição seja ficcionada em qualquer semelhança com a realidade será mera  coincidência, imaginemos.

Primeiro, Um grupo seleto em tertúlia no Majestic, entre o fino e o cimbalino,  produz um número mágico de pontos (10 é o máximo que o “Povo entende” §2).

Segundo, as cinquenta assinaturas são o correspondente cabalístico dos “50 anos de democracia” §último (uma “personalidade” por ano antes das refeições). Fica a forma estabelecida.

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Terceiro, a recolha das 50 personalidades resulta  dos contactos dos telemóveis dos tertulianos, ordenados por ordem de favores a cobrar, com um ou dois  graus adicionais de solicitações. A personalidade recebe a chamada e o texto por WhatsApp, lê em  diagonal em modo de tertúlia digital ou tiktok intelectual e assina.

Apenas imagino este processo, que pode ser distante da realidade, para responder a uma preocupação – duvido que algumas das “personalidades” tenham lido MESMO o texto. Veremos porquê.

Vamos ao conteúdo. A factualidade invocada é conhecida – importância da justiça, morosidade, fragilidade do segredo de justiça. Para além disso, o M50 é de uma indigência conceptual e argumentativa que custa a compreender. Chego lá por várias vias.

(1) No estilo, o número de adjetivos é revelador. Procurem e acharão um para cada substantivo, o que para além do barroco, sugere mais estados de alma do que reflexão rigorosa.

(2) Nos argumentos de autoridade, paternalismo e recurso a pseudo-sofisticação verbal – caso da referência a “estudos de opinião” §1, o “entendimento do Povo” §1, ou o uso polvilhado  da “constituição” ou do “constitucionalmente” (catorze vezes) – uma espécie de canela retórica que dá  um perfume de elevação a qualquer texto ou conversa à mesa.

(3) No objeto de estudo, pergunta sacramental de qualquer teste académico – a justiça ficou reduzida aos salafrários do MP. Então e os juízes que autorizam os alegados abusos, e os advogados que exploram os recursos, os oficiais de justiça que engordam a morosidade, e os serviços prisionais que são uma vergonha silenciosa? Desculpem, mas isto não parece muito bem pensado.

(4) Nas inferências induzidas, nomeadamente a de que a Procuradora-Geral, Lucília Zeus, do alto da sua nuvem, lançou raios, sob a forma de parágrafo, sobre um Orfeu Costa que nos entretinha com a sua lira ou um pobre Fauno madeirense que se divertia com cabriolas. Para além de uma versão saloia dos mitos, há uma realidade a ter em conta – o MP não demite ninguém (não está constitucionalmente consagrado) nem faz golpes de Estado, ninguém se tem de demitir por ter sido referido ou por não ter sido referido. Parece assim evidente que o M50 devia ser mandado para trás para reescrita, sob pena de chumbo direto.

Algo mais substantivo que preocupa este cidadão-que-não-é-personalidade apesar de mais uns pauzinhos de canela. O Ministério Público, não sendo tribunal, está na “prateleira” constitucional dos Tribunais, separada – algumas das “personalidades” explicam melhor, de forma anotada – do poder legislativo e executivo, num quadro de “contrapeso” destes e como relação essencial do Estado de Direito.

A menção do §9. primeiro item é, no mínimo, ambígua – não existe separação de facto entre poder político e justiça porque os Tribunais (e o MP) são parte do poder político (Parte III – CRP). Mas quem é que escreveu isto?

O item 3 do §9 é potencialmente surreal – “Respeitar o poder da coletividade, através dos seus legítimos representantes, de definição da política criminal e de controlo da sua execução” – leia-se, por exemplo, parlamentares a controlar a execução da política criminal? É mesmo isto que queriam dizer e assinaram?

O item 10 do §9 – que não existe – é o da preocupação com os mecanismos de defesa dos cidadãos-que não-são-personalidades e mesmo daqueles que o são. Quantas queixas foram apresentadas na Provedoria da Justiça contra a atuação do MP (por exemplo)? Porque não se mencionam as vias existentes? Portugal já foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) relativamente a problemas no sistema de justiça (condições nas prisões). António Costa pode bem, esgotadas as vias judiciais nacionais que estão, na versão M50, num estado desgraçado, dar um saltinho de Bruxelas a Estrasburgo (TEDH) e intentar uma ação contra o parágrafo divino.

Talvez umas referências comparativas, relativas a países que consideramos como Estados de Direito Democrático (com eleições livres e separação de poderes), coloquem o debate no plano dos cidadãos que-não-são-personalidades, inspirem a atenção das “personalidades” e tornem a pena com que assinam um pouco mais pesada.

Na Hungria de Orban, o controlo dos tribunais tem já alguns anos. Na Polónia, entre 2017 e 2024, a independência dos Tribunais esteve limitada. Em Israel, a reforma judicial proposta pelo governo de Netanyahu desencadeou protestos importantes, e preconizava a reversão de decisões do Supremo Tribunal por uma maioria de deputados do Knesset (parlamento). Nos Estados Unidos da  América onde a relação entre poderes tem uma configuração própria (juízes nomeados e procuradores eleitos) o Supremo Tribunal (com uma maioria de juízes nomeados por Trump, no caso Trump v. United States) declarou (1 de Julho) a imunidade do Presidente num alargado âmbito de situações jurídicas, elevando o cargo de Presidente dos EUA ao nível de Supremo Líder. Sobre a Coreia do Norte não há novidades. Admito que o M50 não está nesta linha justa. Mas não é possível ignorar que as bruxas existem.

Apenas duas palavras finais do cidadão-que-não-é-personalidade para as “personalidades”. Uma de solidariedade e compaixão e outra de apelo.

Na primeira década do século exerci funções públicas depois das quais fui agraciado com uma auditoria da Inspeção do respetivo Ministério que detetou, ora como não, umas quantas irregularidades, e remeteu o relatório para o Tribunal de Contas (TC) que me multou (pessoalmente) por dois pecados veniais administrativos. Vituperei o TC, resfoleguei, partilhei a ira com outros responsáveis universitários, fui ao TC ver e rever o processo, onde me ofereceram simpaticamente um café, prévio ao pagamento das  estipuladas Unidades de Conta. Hoje, ostento a cicatriz com um certo humor e o reconhecimento de que “comes with the job”.  

Os abusos não são toleráveis, nem em procuradores, nem em professores, nem em médicos, nem em polícias, nem nada. Esses julgam-se e corrigem-se. Mas o exercício de funções públicas tem um ónus e temos de admitir que, quando fazemos parte do poder, mesmo simplesmente administrativo, passamos para o outro lado da relação Estado-cidadãos e é contra os nossos abusos que o Ministério Público tem e deve atuar, na defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos-que-não-são-personalidades. Os titulares de poder público só podem ter a porta aberta aos protetores daqueles direitos.

A outra palavra é um apelo. A condição de “personalidade” é variável e não pareceria de bom tom decantar a lista de “assinantes”. Algumas das “personalidades”, cada um escolherá a sua seleção, têm uma responsabilidade acrescida na defesa de um património social e intelectual que imagino deixar para os meus filhos e netos. Partilho com eles a consideração pela ideia de Justiça e a preocupação pela sua prática, mas por favor, e por amor a ela, aos autores, apliquem o provérbio chinês (que aqui contradigo) “Pensem muito, falem pouco, escrevam menos”. E para os outros, leiam devagar o que assinam.