Patriota, sim, mas europeu. Ou um europeu patriota, como devíamos ser todos.

Talvez a morte de Mário Soares, desfecho previsível há algum tempo, permita finalmente esclarecer um equívoco, usado por tanta gente contra o ideal europeu, particularmente nos últimos anos e nomeadamente no rescaldo das várias crises europeias – das dívidas soberanas, do euro, dos refugiados, da democracia liberal:

Esse equívoco consiste na ideia de que não podemos ser a um tempo profundamente patriotas e convictamente europeus, adeptos da integração dos povos europeus num projecto como o da União Europeia e em simultâneo apaixonados pelo nosso país, as nossas gentes, a nossa identidade (no caso da portuguesa) milenar, periférica, humana, aventureira, universalista.

Mário Soares disse-o várias vezes, em entrevistas a órgãos de comunicação, em momentos distintos da sua vida pública: acreditava na Europa, acreditava na União Europeia, e era um português de lei, que amava o seu país acima de tudo o resto. Como eu, aliás, como tantas daqueles que acreditamos nesta visão de um continente em paz, protegido pelo cimento de interesses comuns da guerra, da devastação, da miséria, que sempre o assolou, no que foi, ao longo dos séculos, o traço distintivo principal da Europa, esse continente turbulento, como lhe chamou, creio, Churchill.

Há uma história sobre Mário Soares repetidas vezes evocada, contada por muita gente, mas que não resisto a repetir: em 1976, recém primeiro-ministro da jovem democracia portuguesa, reuniu no Hotel Palace, no Estoril, os economistas portugueses mais reputados de então sobre a hipótese de um pedido de adesão às Comunidades Europeia. Praticamente todos sugeriram que Portugal assinasse um qualquer tratado de associação, mas descartaram a hipótese de adesão, para a qual o país não estaria preparado. No final da reunião, Soares decidiu: e o pedido foi feito pouco tempo depois.

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Portugal aderiu em 1986 à então Comunidade Europeia graças em grande parte à sua acção. A verdade é que, depois de um arranque auspicioso das negociações, o processo de adesão sofreu atrasos, arrastou-se, pareceu quase, a certa altura, condenado a não se concretizar. A vontade política da Europa dos dez – que incluía já a Grécia – em concluir a adesão portuguesa atingiu um mínimo preocupante em 1983.

Mário Soares, primeiro-ministro do recém-formado governo do Bloco Central, afirmou então publicamente que Portugal não estava disposto a esperar indefinidamente pela adesão. Que a CEE tinha de tomar uma decisão. Soares escolhera para chefe das negociações um europeísta convicto, e teimoso: Ernâni Rodrigues Lopes, seu ministro das finanças. Num país em crise económica aguda (provavelmente a maior até à crise de 2009/11), a adesão à CEE torna-se no país a questão política principal.

Mas o processo continua a arrastar-se. Soares impacienta-se e ameaça olhar para outras paragens, em alternativa à CEE. A França coloca obstáculos, adia uma decisão até às eleições de 1984 para o Parlamento Europeu. No Conselho Europeu de Fontainebleau, em Junho desse ano, os líderes europeus chegam a acordo sobre o delicado dossiê da chamada compensação britânica, um dos principais obstáculos à conclusão do processo de adesão de Portugal (e também de Espanha). No rescaldo de Fontainebleau, Miterrand promete a “son ami” Soares que o dossiê português estará fechado até 30 de Setembro.

Mas a adesão portuguesa continua a marcar passo. E Soares irrita-se: chama os embaixadores europeus em Portugal, dá-lhes conta da sua insatisfação. E exige que seja afirmada inequivocamente a irreversibilidade da adesão portuguesa. No dia 24 de Outubro, as instituições europeias assinam em Dublin um “constat d’accord”, documento exclusivamente político, que sela o processo e onde, sem tibiezas, Comissão e Conselho estabelecem uma data para a adesão.

Portugal será europeu a 1 de Janeiro de 1986, depois de uma cerimónia nos Jerónimos, no dia 12 de Junho de 1985, em que Mário Soares é figura de proa; as imagens desse momento passam vezes sem conta, ano após ano, nas televisões portuguesa. E Soares conseguiu, feito simbólico por excelência, que a assinatura portuguesa precedesse a espanhola – a qual terá lugar nessa mesma tarde -, uma espécie de “cavalo de batalha” do então primeiro-ministro e futuro Presidente de Portugal.

Nos últimos anos, Mário Soares mostrou-se desencantado com a evolução da Europa. Mas entenda-se bem que nunca pôs em causa o ideal europeu e a ideia antiga, grandiosa e bela, de uma integração profunda dos povos do continente. Teria aliás, na sua vida, mais alguns encontros com a Europa da União, sendo por exemplo deputado europeu – e um dos mais respeitados que pisou o hemiciclo de Estrasburgo, apesar do “faux pas” da candidatura à Presidência do Parlamento Europeu, que podia ter facilmente conquistado se tivesse tido a paciência de esperar meia legislatura (2 anos e meio); mas ele era assim, impaciente, político até à medula, apressado, mesmo na velhice, sobretudo na velhice, sempre e ainda com projectos, a olhar para o futuro.

Soares amava a paz, a democracia e a liberdade e sabia que só a integração, baseada nos valores europeus da solidariedade e da comunhão de interesses entre os seus países, as garantia.

Mário Soares era um patriota e um europeu. Pode ser que a sua morte, inevitável como todas, marque também, pelo menos em Portugal, o princípio do fim do maior dos equívocos: o de que a União Europeia é inconciliável com as soberanias nacionais.

Ela, sabia-o ele, é o garante da soberania dos Estados europeus, porque é ela que lhes assegura a paz e a estabilidade de que a Europa tanto carece.

Também esse legado nos deixa Mário Soares.