Foi a justificação que ouvi para o cancelamento da minha inscrição na Ordem dos Advogados, pronunciada sem contemplações por parte da Presidente de um dos Centros de Estágio a menos de um mês da repetição das provas finais de agregação e após ter pago 700 euros para o efeito.

Em causa, o facto de algumas peças escritas, elaboradas na segunda fase do estágio, terem sido assinadas de forma digital.

Apesar do cenário de pandemia, o interesse em aceder à profissão não prevaleceu sobre esta questão de forma, mesmo que os tribunais não tenham levantado qualquer incidente de legalidade ou de autenticidade quanto às assinaturas, houvesse um despacho favorável ao aproveitamento dos atos praticados no anterior curso de estágio e tenha havido quem repetisse as provas nas mesmas circunstâncias, embora este último facto apenas possa suscitar um sentimento de injustiça e discriminação.

A divulgação de pormenores sobre essa reunião demolidora seria, reconheço, completamente dispensável e até censurável sob um determinado ponto de vista, mas o facto de a Presidente ir fumando o seu cigarro electrónico à medida que ignorava argumentos jurídicos para reverter a decisão é uma imagem demasiado perfeita da tranquilidade, da indiferença e da longa falta de respeito de quem, sem obstáculo nenhum, quer, pode e manda.

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Não faltarão referências cinematográficas para confirmar este meu julgamento, tendo ficado comigo a real sensação de que o aniquilamento de advogados-estagiários é um jogo muito divertido para quem tem o comando, algo que já seria grave do ponto de vista jurídico e moral, mas que se torna absolutamente revoltante numa altura de suposta revolução digital e modernização administrativa.

Outros pormenores da reunião e deste processo particular poderiam revelar, com igual precisão, alguma da inspiração da Ordem dos Advogados, ou pelo menos de determinados representantes, mas é altura de integrar este caso no debate sobre as barreiras no acesso à profissão, por saber que não fui o primeiro a sofrer com este tipo de decisão e atitude e ter a certeza de que não serei o último, caso nada seja feito.

Nesse sentido, a bem da oportunidade do debate e da sua profundidade, é importante que nunca, em momento algum, se considerem apenas os custos com a formação universitária, o valor dos emolumentos de inscrição, o tempo e o âmbito das fases do estágio de agregação, a remuneração dos advogados-estagiários, a dificuldade ou os critérios de correcção das provas de acesso enquanto obstáculos ao início do percurso profissional: esses são apenas os obstáculos visíveis.

Perante o objectivo maior de evitar que qualquer cidadão licenciado em Direito possa ser advogado, e uma vez que esta primeira linha de obstáculos é possível de ultrapassar mediante muito esforço, dedicação, trabalho, capacidade ou ginástica financeira, acrescentam-se os que se poderão denominar por obstáculos invisíveis.

Em consciência da “necessidade” de filtrar o acesso à Ordem dos Advogados, esta segunda linha de protecção passa pela manutenção de um clima de medo, subtilmente instalado por via da circulação de histórias anteriores, eventos de retaliação mais ou menos declarada e de turbulentos processos em curso, os quais têm em comum o facto de a partir deles se poder depreender, quando não se exibe de forma flagrante, a frieza, a discricionariedade e a prepotência com que os processos podem ser conduzidos. A partir daí, o efeito intimidatório corporiza-se na tensão e pressão que se acrescentam, à mínima oportunidade, aos vários momentos do estágio de agregação, combinado com uma espécie de esquizofrenia administrativa, geradora da incerteza e perturbação com as quais os candidatos “têm de saber lidar se querem ser advogados”.

Algumas das razões possíveis para a composição desta muralha em torno da profissão poderão ser o profundo elitismo que tem vencido até aqui, e não necessariamente um elitismo de natureza técnica ou deontológica, conforme vai havendo oportunidade de constatar, o “monopólio corporativo da Ordem dos Advogados” ou, talvez de forma ainda mais lamentável, poder ser a única forma de manter a profissão num pedestal social, mediático e político sem o qual os advogados mais inseguros e mal preparados temem não conseguir sobreviver. Estes últimos, provavelmente entre os que nunca foram sujeitos às actuais provas de competência e que hoje se entretêm a escorraçar advogados-estagiários por causa de assinaturas digitais em reuniões (viva-se alguma ironia) realizadas via zoom.

Perante este estado de coisas, talvez pouco ou nada se possa esperar da classe em termos de reacção ao que se vive internamente, pois as notícias mais recentes dão conta de um ensaio para acrescentar uma nova exigência académica aos candidatos à profissão, a obtenção do grau de mestre, para além da licenciatura em Direito.

Sendo esta nova exigência apenas mais um indício da orientação da Ordem dos Advogados, a única coisa positiva que se pode retirar daqui serão as eventuais indicações sobre a qualidade da nossa Democracia e concretização do nosso Estado de Direito, cujo ponto de partida para lá chegarmos pode bem ser, pela sua força sumária, a frase que deu título a este artigo.

O estado de confusão relativamente aos órgãos de soberania a que essa frase nos conduz não deve, no entanto, prejudicar a utilidade e a pertinência de um exercício final: apreender e reflectir sobre o que aqui é descrito, multiplicar pelas centenas ou milhares de pessoas que já se candidataram ou candidatam a esta ou a outra ordem profissional, enfrentando o mesmo corpo de obstáculos e, por fim, cruzar esse resultado com os temas da saúde mental, da empregabilidade e da fixação de jovens adultos em Portugal.