No final da década de 80 do século passado, a Ordem dos Advogados introduziu um curso de estágio obrigatório para todos os licenciados em Direito que quisessem ingressar na profissão de advogado. Esse curso tinha «sessões», isto é, aulas, de diversas matérias jurídicas e de deontologia, e terminava com a realização de exames feitos aos candidatos. Inicialmente, o carácter eliminatório dessas provas foi duvidoso e muito discutido, mas, findo algum tempo e vencida alguma contestação, lá acabou por se impor.

Hoje, esse curso mantém o mesmo semestre de «sessões», que são obrigatórias em, pelo menos, 75% do total, e contém matérias como: Deontologia Profissional (Obrigatória) – Prática Processual Civil (Obrigatória) – Prática Processual Penal (Obrigatória) – Direitos Humanos e tramitação processual no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos – Igualdade de Género – Violência Doméstica – Direitos das Crianças e dos Jovens – Estatuto Jurídico dos Animais – Acesso ao Direito e aos Tribunais – Direito do Consumo – Direito do Ambiente – Direito Europeu – Direito Processual Constitucional – Práticas Processuais Laborais – Práticas Processuais Administrativas – Práticas Processuais Tributárias.

Ora, retirando a Deontologia Profissional, que pode e deve ser transmitida, mais até do que ensinada, por profissionais de cada ramo, que mais poderão ensinar os mestres advogados da Ordem sobre as demais matérias, todas de índole universitária, que os alunos não tenham aprendido nas Faculdades de Direito que frequentaram, os avaliaram, aprovaram e licenciaram? E, já que estamos em momento de grande exigência para com os avaliados, seria da mais elementar racionalidade não descurar também os avaliadores: quem são esses professores que lecionam estas matérias e que sobre elas aprovam ou reprovam os estagiários? Que graus académicos detêm? São, ao menos, mestres em Direito? E doutores, haverá por lá muitos ou poucos? Dos mestrados e doutoramentos pré ou pós-Bolonha, que, tal como as licenciaturas, são também muito distintos? Nesta mesma linha de rigor, será que alguém controla a qualidade da formação obrigatória que a Ordem impõe aos licenciados em Direito? Que há quem verifique os programas das unidades curriculares que constituem o curso? A bibliografia aconselhada? A adequação ao fim pretendido? E, last but not least, a aptidão e qualificação científica e pedagógica dos senhores professores da Ordem para ensinarem essas matérias? É o senhor bastonário quem o faz? São os Conselhos Distritais? Ou será que os cursos de estágio da Ordem dos Advogados, que autorizam ou impedem licenciados em Direito de serem advogados, não são fiscalizados por nenhuma entidade externa, como deveriam ser? Que os seus responsáveis e professores não prestam contas a ninguém do que lá fazem, de como ensinam e avaliam? É que, nas ditas Universidades de cujo magistério formativo a Ordem parece agora duvidar, estas coisas têm exigências legais e são pormenorizadamente auditadas por entidades externas. Como, aliás, deve ser.

Acresce que, se até ao final da década de 80 a realização do estágio de advocacia era praticamente gratuita, progressivamente a Ordem dos Advogados foi criando emolumentos e preços a pagar pelos estagiários, que fazem com que o curso seja proporcionalmente tão caro como uma pós-graduação, um mestrado ou doutoramento de muitas Universidades portuguesas. Conforme a Deliberação do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, aprovada em 21 de Dezembro de 2015, os valores mais significativos são os seguintes: € 700,00 a pagar no ato de recebimento do pedido de inscrição; € 300,00 a pagar até 5 dias antes do termo da primeira fase do estágio; € 500,00 a pagar até 30 dias antes da data designada para a realização da prova escrita que integra a prova de agregação; € 50,00, no caso do estagiário mudar de patrono; € 50,00 pelo pedido de recurso de cada componente da prova de agregação, com excepção da prova escrita; € 37,50, idem, por cada área da prova escrita; € 50,00, em caso de prorrogação do estágio. Ou seja, pelo menos € 1.500,00, em seis meses, um esforço financeiro que não está ao alcance de qualquer um.

O argumentário disto é sobejamente conhecido: a necessidade de assegurar a qualidade dos futuros advogados. Sempre o interesse público, como é evidente. Nesse caso, será de perguntar para que servem as Faculdades de Direito, se nem sequer conseguem habilitar os seus licenciados para o exercício daquela que é a profissão que eles maioritariamente querem seguir. É contudo evidente que não é isso que está em causa, mas a reserva do mercado da advocacia por parte de quem nele está instalado e não quer a concorrência dos mais novos: “já há advogados a mais, é necessário regular esse mercado”. Um controlo de mercado promovido por uma entidade a quem o Estado deu, e deu mal, o monopólio da representação obrigatória de todos os advogados portugueses. Na verdade, se em 1975 o país conseguiu ver-se livre da “unicidade sindical”, que o PCP queria impor através da CGTP-Intersindical, por que razão, em pleno século XXI, os advogados não podem exercer a sua profissão se não estiverem inscritos na única Ordem que o Estado deixa existir? Ficaria o rigor do exercício da advocacia prejudicado se existissem outras associações que, com o mesmo fim, também agregassem e representassem advogados portugueses? A Ordem tem de ter esse monopólio? Por quê?

O corporativismo, ou seja, a proteção dos interesses dos advogados instalados, é, na verdade, o motivo de tudo isto, e é com isto que se adiam ou destroem vocações e anos de trabalho de inúmeros jovens licenciados em Direito. Tão licenciados em Direito como aqueles que, na Ordem, autorizam ou impedem o seu ingresso na advocacia.

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