A recente resposta legislativa à questão das matrículas, na sequência do reacendimento da polémica em torno da utilização de “moradas falsas” no verão do ano passado, tem o mérito de procurar combater esquemas fraudulentos que perduram há décadas e que se traduzem em desigualdades sociais no acesso à escola.

A obrigatoriedade de provar que o encarregado de educação vive com a criança através de informação da Autoridade Tributária reduz a possibilidade de determinadas famílias, geralmente aquelas com mais recursos, informação e contactos, contornarem as regras e garantirem o cumprimento de um dos critérios prioritários de colocação, o do local de residência. A preferência concedida a alunos com carências socioeconómicas cujos pais residam ou trabalhem na área de influência da escola também concorre para uma restrição da capacidade de seleção por parte das escolas.

Mas a verdade é que as alterações não resolvem o problema da desigualdade de acesso. Mais do que resultado de fraudes, este problema tem origem em desigualdades territoriais e residenciais que se refletem em desigualdades escolares e que não começará a ser corrigido enquanto o critério geográfico permanecer no sistema de matrículas.

A diversidade dos contextos sociais que marcam os processos educativos verifica-se à escala nacional, mas é especialmente nas áreas metropolitanas, densamente povoadas, que as diferenças na composição social de escolas por vezes muito próximas geograficamente se observam. Veja-se, na Figura abaixo (‘Percentagem de mães com Ensino Superior no 3º ciclo, sede dos Agrupamentos, 2013/2014’), o caso da escolaridade das mães: em espaços geográficos relativamente pequenos, encontram-se agrupamentos com percentagens muito contrastantes de mães com Ensino Superior. (Fonte: DGEEC/ ME, MISI. Recorte a um dos mapas da publicação Atlas da Educação. Nota: os intervalos foram definidos pelos quartis da distribuição.)

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O mesmo se poderia atestar caso se representasse a percentagem de alunos com apoios sociais ou de origem imigrante. Não sendo uma fatalidade, a questão é que a composição socioeconómica da escola explica algumas diferenças no percurso escolar dos alunos. De acordo com o último estudo do PISA (2015), 53% dos alunos das escolas do país no escalão mais baixo do estatuto económico, social e cultural das escolas chumbaram pelo menos uma vez; a percentagem foi de 11% nas escolas com estatuto mais favorável.

Nesse mesmo estudo, os resultados de um questionário dirigido aos pais revelam que os critérios com mais peso na escolha da escola das famílias portuguesas são um ambiente seguro (97% dos inquiridos considera-o “importante” ou “muito importante”), o clima de escola (94%) e a boa reputação (94%); a distância da escola surge em sexto lugar, com 73%. A análise mostra que é mais provável que pais cujos filhos frequentem escolas socioeconomicamente favorecidas e urbanas atribuam maior importância à boa reputação, enquanto os pais com filhos em escolas socioeconomicamente desfavorecidas, rurais ou públicas conferem maior importância à distância. Tal é relevante, uma vez que as crianças dos pais que conferem maior importância a este último critério tiveram piores resultados, mesmo controlando os efeitos das condições socioeconómicas.

Teme-se que uma maior diversificação da oferta e liberdade de escolha dos pais contribua para um reforço das desigualdades, beneficie interesses individuais e ponha em causa a missão pública do ensino. Porém, o sistema atual, ancorado no critério geográfico, está longe de promover a igualdade de oportunidades.

Com as atuais regras das matrículas escolares, quem sai mais prejudicado são os alunos com menos recursos. Vários são os mecanismos que contribuem para uma segregação entre escolas, como a colocação dos docentes ou o encaminhamento de alunos com maiores dificuldades para escolas consideradas menos “reputadas”. Mesmo escolas que beneficiam de políticas de discriminação positiva, como as que fazem parte do Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária acumulam condições socioeconómicas desfavorecidas dos alunos com uma forte instabilidade do corpo docente, que procura outras alternativas. Parece que a própria identificação e designação enquanto TEIP aumenta a sua estigmatização.

A discussão sobre alternativas é complexa, mas necessária. Como introduzir alguma diversidade na oferta, respondendo a necessidades contextuais, possibilitar um maior grau de escolha no interior da rede pública, e ainda assim evitar que se intensifiquem desigualdades?

A descentralização de competências para municípios e iniciativas como o atual projeto de autonomia e flexibilidade curricular podem ser vistos como oportunidades para respostas contextualizadas, diversificação de opções e a procura de compromissos locais, que convocam a participação de outros protagonistas. Entretanto, colocam também outros desafios. Devemos, pois, também neste contexto acautelar quem (e através de que mecanismos) fica responsável por assegurar a igualdade de oportunidades e a qualidade das escolas, lembrando-nos que o que está em causa é uma reprodução, na escola, de desigualdades sociais territoriais.

Investigadora no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova (CICS.NOVA)
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.