Para nós crentes, cristãos, católicos, o tempo da Páscoa é um ciclo de vida, morte e vida nova. Um ciclo rápido, substancial e simbólico, que começa com Jesus a entrar triunfalmente em Jerusalém, a passar pela noite e pela angústia de Getsémani, a ser preso, julgado, condenado, humilhado, crucificado e sepultado. E é só ao terceiro dia que ressuscita, que vence a morte, perante a incredulidade inicial de muitos dos que O seguiam. As santas mulheres acreditaram logo mas há um discípulo que quer ver para crer. E há dias e horas em que todos queremos.
Antes, é uma longa via-sacra até ao martírio final. Uma via-sacra que celebramos e repetimos. Este ano foi também assim.
No seu mistério, a morte de Cristo lembra-nos a morte dos nossos mortos, dos mortos que nos deram a vida e dos que estiveram na nossa vida. E quando já tivemos muito tempo do tempo, é um longo cortejo, uma particular Procissão de Defuntos.
Estou a lembrá-los, especialmente os meus pais, os meus sogros, a tia Mimi, uma tia que me era muito querida, o meu tio Alexandre e tantos que partiram e deixaram legados bons: desde os professores do liceu D. Manuel II, que me comunicaram o gosto do “alegre saber”, a companheiros de ideias e de combates políticos, como o Ernesto e o Victor, que partiram há pouco. É uma procissão, um desfile de rostos e de figuras que se aproximam e depois se afastam, como num filme antigo e mudo; que passam para uma outra margem, como que levados por uma barca invisível, de Caronte ou do Anjo, para um rio sem regresso, para o outro lado do mundo e da vida.
De todas estas imagens e memórias, mais forte que todas as presenças, mesmo das mais queridas, há uma grande ausência, uma grande ausente, a Zezinha. Uma ausência que é mais forte neste tempo, nesta estação de Primavera, que me traz a última Páscoa e Primavera que vivemos do lado de cá, na Botilheira, há oito anos; uma longa Noite das Oliveiras que se repete, e que agora revivo, sozinho. Ela nem em Getsémani teve medo, só uma pena serena do que deixava. Confiava plenamente que o Caminho começava aqui, deste lado, e percebia-se aqui por sinais discretos mas seguros, sinais do Bem e de todos os bens no meio do Mal e de todos os males. Por isso não tinha medo.
A saga e agonia dos cristãos – e de todos os homens e mulheres, mas agora falo dos cristãos – repete-se em todo o planeta. Hoje também.
De maioria que éramos, maioria dominante e governante, e por isso até arrogante, nós cristãos, na Europa e no mundo, estamos a ficar minoria e voltámos a ser perseguidos, alvo de atentados, de discriminações, de humilhações. Nesta manhã de Domingo de Páscoa, foi em Ceilão, no Sri Lanka, igrejas católicas bombardeadas, muitas dezenas de fiéis mortos. Segundo uma estatística que encontro no acaso da Internet, em média onze cristãos são mortos no mundo, diariamente, por serem cristãos.
Já foi pior. Na Rússia dos bolcheviques ou de Estaline mataram mais e mais depressa; no México dos generais laicos e republicanos também. E também há cristãos, bispos mortos nas Américas por sicários de tiranos do “outro lado”, talvez até do “nosso lado”. E também do nosso lado já perseguimos, já matámos, já discriminámos. Não somos inocentes. Ninguém é.
É um grande mistério, o mistério do Mal, mistério que deve ter atirado mais almas boas para a descrença do que muitas perseguições. E o pior é quando o mal anda à solta, no que devia ser a casa de Deus, como nessas redes de operação e protecção de pedófilos, com antenas perto dos degraus de Pedro.
Perante este mal, estes males, ficamos sem palavras, sem filosofia, sem teologia. Talvez como diz o cardeal O’Malley, o único remédio seja rezar, de joelhos, pedindo por todos, pelas vítimas, pelos predadores, por nós. E abraçar o mistério abrindo os olhos e o coração ao Bem, aos muitos bens, que também nos rodeiam.
Tive a sorte ou a graça de a minha Mãe me ter explicado que, para guardar a Fé, tinha de a proteger da razão crítica absoluta, por muito subtil ou sedutora que esta fosse ou parecesse. Que a tal razão não era a senhora da verdade. Que, desde o princípio, a Religião e a Fé tinham mistérios, que só aparentemente eram irracionais, porque tinham outras razões e razões maiores.
E na idade crítica das dúvidas e das crises, a grande crise e a grande dúvida não me chegou de um racionalismo à Espinosa ou de um materialismo à Feuerbach ou à Marx: veio-me de um irracionalista existencial e poeta, de Nietzsche, do Zaratustra, do Anticristo, da Genealogia do Mal, do Para Além do Bem e do Mal.
Nietzsche foi uma descoberta de adolescência, um cometa radioso e brutal que, num dia de Verão, escaqueirou ídolos, mas também partiu crenças e valores. Mas, como mais tarde aprendi com Jaspers, parte da força de Nietzsche vinha dessa sua ilimitada paixão pela verdade, pela procura da verdade. Paixão que não era antiga nem pré-socrática mas profundamente cristã.
Pois é. E nesse itinerário atormentado da pós-adolescência em que nos formamos e às nossas convicções, na busca e no encontro das razões últimas das coisas “desrazoáveis”, ajudou-me um poeta – Charles Péguy.
Péguy, um homem da esquerda republicana, livre-pensador anticlerical, simpatizante da Comuna e “Dreyfusard”. Péguy, um dos primeiros a perceber e a denunciar a chegada do grande Moloch da modernidade – o Dinheiro. Péguy, seduzido depois pela figura de Joana d’Arc e pela teologia simples e poética dos “Mistérios” medievais.
Péguy afasta-se dos socialistas, de um partido que vê como “um partido político de intelectuais burgueses”, desertores do trabalho e dos trabalhadores. Inspira-se em Descartes, Pascal e Bergson e, em 1910, três anos depois do regresso “às crenças e costumes cristãos da infância”, publica Le Mystère de la charité de Jeanne d’Arc. O tema sempre me intrigou e preocupou: por que é que, no fim desta História grande do mundo e das nossas pequenas histórias pessoais, por que é que (mesmo considerando a liberdade ou livre arbítrio dos filhos de Deus, que até nos permite perdermo-nos) há uns que se perdem, uns para os quais o sacrifício pascal, o martírio e a morte de Cristo, de nada serve?
É nesta procura – em versos livres – que Péguy formula o problema, a interrogação e até a resposta. A meditação parte do “Tristis, tristis usque ad mortem” da narrativa de Mateus. Porquê esta tristeza que acompanha Cristo nos momentos derradeiros? Como homem, sofreria as extremíssimas dores do suplício, mas sabia também que estava a acabar e que ia voltar para o Pai de missão cumprida. Sofredor, aflito, sim… Mas triste?
Por um lado, há coerência na narrativa de São Mateus quanto às horas de angústia e medo em Getsémani, antes da prisão: Cristo é plenamente Deus mas é plenamente homem e, como homem, sofre, como todos os homens – tem medo, tem dores, passa por uma agonia prolongada. Mas a tristeza, porquê a tristeza? É para essa tristeza que Péguy dá uma chave que muito me impressionou quando li Le Mystère pela primeira vez, há mais de meio século. Para Peguy, a imensa tristeza, o terrível grito de dor de Cristo, vem-lhe da visão – que só Cristo plenamente Deus pode ter – da inutilidade do seu sacrifício para as almas que se perdem, que se querem perder, para aquelas a que a salvação que Ele garante pode não chegar nunca.
Haverá maior mistério do que este, de um Deus que sofre como homem os limites da dor, mas que, como Deus, sabe que algumas das suas criaturas não se salvarão?
Maior do que este, talvez só o mistério da Esperança, dessa “menina pequena”, tão pequena que ninguém “repara nela”, de que também fala Peguy n’ Os Portais do Mistério da Segunda Virtude.
No meio do mal e do bem, de todos os nossos calvários e redenções, de todas as nossas crenças e perplexidades nos portais dos pequenos e grandes mistérios, mal reparamos na esperança que Cristo nos traz, na esperança que também nos trouxeram e trazem, sempre discretamente, todos os que seguiram e seguem os Seus passos. Basta que lhe demos a devida atenção: encontramo-la em muitos dos que morreram e nos são queridos e cruzamo-nos com ela todos os dias, entre os vivos: e é ela, essa “menina pequena” que “arrasta tudo consigo”; porque “a Fé”, garante Peguy, “só vê aquilo que é./ Mas ela, ela vê aquilo que será./ A Caridade só ama aquilo que é./ Mas ela, ela ama aquilo que será.”