O padre João Seabra, que conheci nos anos 60, na Faculdade de Direito, deixou-nos no dia 3 de Junho. Ao longo deste meio século fomos e ficámos bons amigos; juntos pela vida, e nas causas da Vida.

Quando nos conhecemos, o João era monárquico liberal e eu nacionalista revolucionário, mas sempre nos respeitámos e demos bem. Voltámos a encontrar-nos no princípio dos anos 80, ele já ordenado sacerdote e eu de volta do exílio, a começar o Futuro Presente. O João, nessa época, procurava compreender como é que o 25 de Abril e o PREC, que tinham sido “uma aventura divertida” para tantos da nossa geração, eram, para a Zezinha e para mim, uma tragédia. Falávamos disso muitas vezes, e ele foi percebendo a importância que para nós tinha tido o fim do Império.

Sempre na linha da frente

Depois, com o correr do tempo e a chegada à sociedade portuguesa das novas ortodoxias políticas e de uma nova moral anti-cristã e anti-nacional em nome de um supremo individualismo – que ia do “enrichez-vous” liberal às micro-causas aparentemente libertárias mas realmente liberticidas – fomos estando também unidos, não só na amizade, mas também em muitos  combates: contra o Aborto, contra a Eutanásia, pela Vida, pela Família e por valores comunitários e de proximidade capazes de promover a liberdade, a justiça e a dignidade humana e de combater o hedonismo generalizado.

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A guerra para impor as novas ortodoxias e a nova moral não era já feita através da violência directa, da proibição, do autoritarismo do Estado, como o fora no Liberalismo regalista de 34 e na Primeira República (que o João tão bem escalpelizou na sua tese de Doutoramento), mas pela estratégia indirecta das aparentes “boas causas”: a autonomia da mulher e a “liberdade” de dispor do seu próprio corpo; a escolha, por cada um, do tempo e do modo da própria morte e o dever da sociedade e dos profissionais do sistema nacional de saúde de o “ajudarem” a concretizar essa escolha; a aceitação e a “consagração” de uniões à la carte; a “liberdade” de autodefinição e de auto-reinvenção longe da “tirania da biologia”.

O padre João Seabra, como sacerdote, como professor, como líder, como homem, esteve sempre na frente destes “bons combates” – com firmeza e determinação, sem ceder a modas, sem calar a verdade, sem se refugiar na ambiguidade para agradar aos poderes públicos, à comunicação social ou à “boa opinião” dos salões e “da rua”.

Depois, graças à sua profunda cultura e inteligência, percebeu como ninguém a questão real e central do problema nacional, um mal que vinha de longe mas a cada ano agravado: a promoção da mediocridade pela deformação da educação e do ensino, tanto nas chamadas “Ciências exactas”, onde o saber é necessariamente cumulativo e as graves insuficiências do sistema não podem ser compensadas pelo ocasional bom professor, como também, ou sobretudo, na área das Ciências Humanas e da História por razões ideológicas e “corporativas”.

Porque a formação dos espíritos não se faz nas Universidades: faz-se antes, no tempo que vai da infância à adolescência, para se consolidar na juventude. É quando escolhemos os nossos modelos, os nossos heróis, aquelas personagens, reais ou fictícias, com que nos queremos identificar. Hoje o conselho dos sábios é não ser fiel a coisa nenhuma, procurar safar-se, conseguir o sucesso, o bom emprego. E politicamente ficar naquele centrismo rigorosamente ao centro, que é o lugar geométrico dos portaborse e dos intelectuais de serviço ao sistema, um “centrismo” que agora acomoda no seu mainstream o bom “activismo” pelas “causas fraturantes”.

Com grande visão, coragem, tenacidade e fé, o padre João Seabra dedicou as últimas décadas da sua vida a criar colégios que, além dos saberes curriculares, formassem pessoas nas convicções, nos princípios, na verdade. E não foi fácil, como neste país nunca é fácil, estar verdadeiramente contra a corrente.

O Poder e a Glória

A condição de sacerdote, de padre, de ministro de Deus, o carisma de perdoar os pecados, de consagrar o corpo de Cristo, dado a um homem, numa época de descrença e cepticismo, foram tema de muitos e bons romances. Nos meus vinte anos li muita dessa ficção, em que a figura do padre era central. The Power and The Glory, de Graham Greene, nos tempos da perseguição aos católicos no México, foi um dos que mais me tocou; ou o Journal d’un curé de champagne, de Bernanos, com aquele jovem pároco perdido que procura os sinais da Graça, perante o que lhe parece ser o silêncio de Deus no outrora devoto campo francês. Lembro-me também de Les Saints vont en enfer, de Gilbert Cesbron, que tinha sido um sucesso dos anos 50, com a figura do “padre-operário”; sem esquecer o Eurico o Presbítero, o Padre Amaro ou os “Dons Camilos” rústicos de Camilo Castelo Branco.

Essas odisseias de padres católicos na modernidade, da perseguição anti-cristã do México dos anos 30, ou da descrença no campo francês ou nos bairros operários das periferias urbanas, não tinham, talvez, a grandiosidade apocalíptica das lutas entre Deus e o Demónio das narrativas de Dostoievsky, ou do dilema trágico de Chinmoku (Silêncio), o romance do japonês Shusaku Endo, de que Martin Scorsese fez um grande filme. Mas o Grande Inquisidor que vai prender o próprio Cristo reencarnado, e o padre Ferreira, que cala a fé para salvar os seus cristãos, andam à volta desse mesmo mistério da Fé que é também um mistério para os homens.

Estamos hoje num tempo em que tudo parece conjugar-se contra o mistério e empenhar-se na sua negação, ou em perseguir subtil e ambiguamente a verdade com as armas da tolerância paternalista, do desdém cientista, e também da exploração, nos media, dos reais pecados de alguns padres. Pecados reais de homens que também são tentados, que também pecam como os outros, mas que, pela sua responsabilidade acrescida, “mais lhes valera que lhes atassem uma mó de moinho ao pescoço e os atirassem ao mar”, nas palavras do próprio Cristo a propósito dos que escandalizam crianças. Porém, estes pecados repugnantes – os seus protagonistas e os seus encobridores que, por desgraça, encontraram nicho na própria Igreja – não são, de modo algum, sinónimos da Igreja, do clero, do catolicismo, como às vezes se quer fazer parecer ou é insinuado em parangonas para aplicar à Igreja uma regra de culpa colectiva, de amálgama, e causar uma onda de indignação (essa sim) populista. Como se fossem todos assim e nada mais houvesse no passado e no presente da Igreja do que isso. É um ódio velho que não cansa…

A guerra contra a Igreja

Além da sua exemplaridade sacerdotal, devemos ao padre João Seabra uma investigação rigorosa e fundamentada das raízes deste ódio velho à Igreja em Portugal; um ódio que não se confunde com o anticlericalismo de escritores como Herculano, Camilo, Eça de Queirós ou alguns neo-realistas. Foi da “erradicação do catolicismo, considerado responsável histórico do atraso do país”, que então aqui se tratou e João Seabra estudou o fenómeno na sua tese de Doutoramento em Direito Canónico, em Roma, “A Lei Portuguesa da Separação do Estado das Igrejas de 20 de Abril de 1911”.

Para as esquerdas, o “atraso português” terá sempre de dever-se a alguém de que não gostam ou ao inimigo principal do momento; ora aos padres, ora a D. Miguel, ora a Salazar e às sequelas do salazarismo, ora à “extrema-direita”. Passados quase 50 anos sobre o 25 de Abril, ainda vivem a repetir os malefícios da Censura e da PIDE, pintados com cores inquisitoriais e gestapianas. Só é curioso que alguns destes democratas de sempre se tenham convertido à democracia pós-25 de Novembro, já que nos tempos revolucionários tinham por ídolos Lenine, Trotsky, Mao, Pol Pot e outros conhecidos modelos de liberalidade, liberdade, paz e bom entendimento entre os homens.

Na sua tese, João Seabra filiou a guerra contra a Igreja em Portugal, na Dedução Cronológica e Analítica do padre António Pereira de Figueiredo, especificamente contra os jesuítas. A guerra intensificou-se em 1834 com a expulsão das congregações, continuou nas anterianas “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, e, proclamada a República, objectivou-se na Lei da Separação, cópia servil pelas esquerdas domésticas das leis francesas do anticlericalismo básico. Lá e cá se mataram uns padres, lá e cá se expulsaram uns bispos e lá e cá se mediram os crânios a uns religiosos para provar as suas lombrosianas más inclinações.

Até hoje subsiste a questão da declaração de Afonso Costa, na sede do Grande Oriente Lusitano Unido, em 26 de Março de 1911, vaticinando, sobre a legislação que sairia três semanas depois que “a acção da medida será tão salutar, que em duas gerações Portugal terá eliminado completamente o catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em que caiu”.

A Primeira República, até ao sidonismo, atacou efectivamente a Igreja, colocando-a sob tutela administrativa, vigiando-a e controlando-a, pretendendo, em nome da liberdade, acabar com o catolicismo em Portugal. O catolicismo popular nascido de Fátima e a reacção nacional-autoritária e popular do sidonismo interromperam o processo, ainda na República. E depois veio o 28 de Maio.

Hoje, João Seabra denuncia a situação na Europa no final da sua tese: “vem-se criando um sistema cada vez mais cerrado de limitações ao culto divino e à vida das comunidades cristãs”, nomeadamente “nas limitações firmes à liberdade de educar”.

Consequente com a sua Fé e a sua inteligência, foi aqui que, nos últimos anos, João Seabra concentrou o seu combate, o seu bom combate, corajosamente prosseguido na saúde e na doença.

Num tempo em que a doença, a deficiência e a fragilidade se escondem e em que a morte futilmente se apressa, o João Seabra que era, aparentemente, tão senhor de si – e que teria razões humanas de sobra para o ser – foi exemplar na forma de viver a doença e a carga de sofrimentos, limitações, incapacidades e dependências que lhe foi trazendo. Fê-lo habitualmente, no meio de nós, com uma humildade funda, gloriosa e comovente de servo dos servos de Deus, de cristão confiante, tanto na fortaleza como na fraqueza e na debilidade, à semelhança de Cristo e desse outro grande exemplo de pastor e cristão, São João Paulo II.