Entre os fenómenos supostamente sobrenaturais, as alegadas aparições marianas em Medjugorje ocupam um lugar privilegiado, não apenas pelo seu número, mas também pela multitudinária afluência de peregrinos. Duas razões que explicam que, com data de 19-9-2024, o Dicastério para a Doutrina da Fé tenha publicado a declaração “A Rainha da Paz. Nota sobre a experiência espiritual ligada a Medjugorje”.

Foi a 24 de Junho de 1981 que, em Medjugorje, uma pequena povoação na Bósnia-Herzegovina, ocorreu a primeira alegada aparição de Nossa Senhora a um grupo de seis jovens. O facto de estas supostas manifestações marianas terem ocorrido na antiga Jugoslávia, uma zona então fustigada pela guerra, explica que Maria se tenha identificado como “Rainha da Paz”. Como são muito numerosas estas suas eventuais revelações e a Igreja não poderia emitir um parecer sobre as alegadas aparições sem se pronunciar sobre as correspondentes mensagens, o Dicastério para a Doutrina da Fé limitou-se a publicar uma Nota sobre a experiência espiritual ligada a Medjugorje.

Medjugorje é, sem dúvida, um local abençoado, não apenas pelas prováveis aparições da Virgem de Nazaré, mas também pela enorme afluência de fiéis. Qualquer que seja o veredicto final da Santa Sé, não restam dúvidas quanto aos excelentes frutos espirituais já verificados. Verdadeiras multidões de crentes peregrinam habitualmente para essa pequena povoação, bem como não-crentes movidos pela curiosidade, ou pelo desejo de uma experiência espiritual. De facto, são inúmeras as conversões dos que aí alcançaram o dom da fé, bem como dos crentes que regressaram de Medjugorje renovados interiormente. Muitos são os peregrinos que aí viveram uma profunda mudança espiritual. Foi para atender a esta extraordinária eficácia pastoral que a Santa Sé sentiu agora a necessidade de se pronunciar.

A 17 de Maio de 2024, o Dicastério para a Doutrina da Fé tinha publicado umas normas relativas ao discernimento de possíveis acontecimentos de carácter sobrenatural, mas a presente Nota não aprova, nem desmente, as supostas aparições marianas, pois só se pronuncia “sobre a experiência espiritual ligada a Medjugorje”, ou seja, sobre as peregrinações a esse local e o culto que aí se presta à Mãe de Deus.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Que pensar, então, em relação às alegadas aparições?! Segundo esta declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé, “embora não se confirme a autenticidade das ‘supostas aparições’, a Igreja reconhece o impacto que tiveram na vida de muitos peregrinos que, ao visitar esse lugar, experimentaram um renascimento espiritual. Estes frutos incluem a participação intensa na Missa, a reza do terço e a adoração do Santíssimo Sacramento, para além de reconciliações matrimoniais e pessoais.” Ao reconhecer os frutos espirituais, o Dicastério para a Doutrina da Fé implicitamente manifesta-se a favor da autenticidade das aparições, segundo o conhecido princípio bíblico: “Pelos seus frutos os conhecereis. Porventura colhem-se uvas dos espinhos, ou figos dos abrolhos? Assim toda a árvore boa dá bons frutos, e toda a árvore má dá maus frutos. Não pode uma árvore boa dar maus frutos, nem uma árvore má dar bons frutos. (…) Vós os conhecereis, pois, pelos seus frutos.” (Mt 7, 16-18.20).

O culto mariano obedece à centralidade do mistério cristão, ou seja, a adoração é apenas devida a Deus. No entanto, podem e devem ser veneradas as criaturas a que a Igreja reconheceu santidade, como os anjos e os santos. Merecem particular devoção Maria e José, pela sua especialíssima participação no mistério de Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado. Neste sentido, Maria é objecto de máxima veneração, ou ‘hiperdulia’, mas não de adoração, apenas devida a Deus e, por isso, também a Cristo, que é verdadeiro Deus, e à Eucaristia, que é Ele próprio real, verdadeira e substancialmente presente.

Na realidade, a devoção a Maria é, na liturgia católica, secundária e instrumental. Secundária, porque a prioridade absoluta deve ser sempre dada a Deus, na sua unidade essencial e trindade de pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo, de que Maria é, respectivamente, filha, mãe e esposa. Instrumental, porque o culto mariano está, pela sua própria natureza, subordinado à verdadeira adoração devida a Deus. Por intermédio de Nossa Senhora nos foi dado o Salvador e é também por sua mediação que Cristo, pela graça do Espírito Santo, nos guia para o Pai. Neste sentido, Maria é, pela sua união com o seu divino Filho, medianeira de todas as graças e corredentora.

A Nota agora emitida “sublinha a importância de pôr em Cristo o centro de toda a experiência espiritual em Medjugorje. Maria ocupa um lugar especial na devoção dos fiéis: as mensagens autênticas transmitidas pelos videntes destacam repetidamente que Nossa Senhora não se põe a si mesma no centro, mas guia os fiéis para Cristo. Este aspecto cristocêntrico foi decisivo para a positiva apreciação do caso” (Infocatólica, 19-9-24) e atesta a favor da sua autenticidade sobrenatural.

As palavras ditas por Maria, por ocasião do milagre de Jesus nas bodas de Caná, expressam a verdadeira devoção mariana: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 5). O primeiro teste a fazer a uma hipotética revelação de Nossa Senhora é o da sua concordância com o Evangelho, que é sua condição necessária, mas não suficiente: uma declaração divergente é, necessariamente, falsa, mas uma afirmação em sintonia com a doutrina da Igreja, mesmo sendo verdadeira, não é necessariamente de origem sobrenatural.

Alguns devotos da Santíssima Virgem têm dificuldade em compreender e aceitar a demora da Igreja no que respeita à aprovação, ou não, de alegadas aparições marianas, mas a Santa Sé faz bem em ser muito prudente nesta matéria. Este tipo de intervenções divinas em nada alteram o depósito da revelação e, portanto, não são objecto de fé. Com efeito, um católico não está obrigado a acreditar nas aparições de Fátima, ou de Lourdes, mas sim nas respectivas mensagens, na medida em que são evangélicas.  Por isso, a atitude inicial da Igreja, em relação às aparições na Cova da Iria, foi de razoável dúvida. Como depois disse o Cardeal Cerejeira, não foi a Igreja que impôs Fátima, mas foi Fátima que se impôs à Igreja.

A Nota afirma ainda que “podem existir opiniões divergentes sobre a autenticidade de alguns aspectos do fenómeno, mas é inegável que, em Medjugorje, ocorreram inúmeras conversões e decisões de renovação espiritual”. Estas aparições ainda não foram formalmente reconhecidas pela Santa Sé, mas o seu ‘nim’ é já um auspicioso indício de que, finalmente, Medjugorje se está a impor à Igreja, como “um lugar de encontro com a Rainha da Paz e com Cristo, onde o Espírito Santo actua para o bem da comunidade cristã.”