Há quinze dias, a propósito da “escuta” a um telefonema entre António Costa e João Galamba, critiquei aqui umas declarações do Francisco Mendes da Silva, que estava furioso com a transcrição e a divulgação da conversa, mas nada furioso quanto ao conteúdo. Uma semana depois, o Francisco respondeu-me no “Público”. A resposta é esquisita.
O Francisco começa por esclarecer que nos conhecemos. Confirmo. Na heróica época dos blogues, estivemos juntos em meia dúzia de repastos “colectivos”. Uma ocasião, após um desses almoços, o Francisco fez um desvio considerável para me dar boleia, favor que muito apreciei e agradeci. Vi-o pela última vez em Viseu, salvo o erro em 2016. Que me lembre, nunca falámos ao telefone. Nunca trocámos mensagens ou e-mails. Ou seja, não nos conhecemos o suficiente para que o Francisco saiba qualquer pormenor da minha vida privada. Isso não o impediu de inventar o esboço de uma, de modo a servir de “contexto” ao que escrevo e a encaixar (retribuo o verbo) numa “tese” que ele julgará demolidora.
Diz o Francisco que me “especializei” na “linhagem do eremita telúrico, misantropo, quase Maurrasiano, que flagela as oligarquias degeneradas da pátria a partir dos confins imaculados da dita”. No alvo, caramba. Como é que o Francisco obteve tanta informação sem acesso a “escutas”, jamais perceberei. E a preciosa alusão a Maurras, um patriota e um anti-semita, descreve-me na perfeição. Porém, o importante não é a plausibilidade. O importante é que, ao enfiar-me na tal “linhagem”, o Francisco amarrota-me o carácter, expõe-me as intenções e desvaloriza-me a opinião. Confesso-me derrotado.
E tudo porque não fui o primeiro a usar o argumento ad hominem. Se me tivesse ocorrido, teria comparado o Francisco a Artur Corvelo, o poeta romântico de Viseu, perdão, de Oliveira de Azeméis que “sobe” à capital, a literal e o romance do Eça. Sucede que nem Lisboa satisfaz o Francisco, que visivelmente preferia Londres. As “redes sociais” dele estão apinhadas de indícios: o Francisco venera agrupamentos pop britânicos, apoia a selecção inglesa da bola, refere os restaurantes do Soho com esmagadora familiaridade, estampa o nome de Evelyn Waugh em bonés, etc. O Francisco é o Artur Corvelo em escala para um voo indefinidamente adiado. Resta-lhe, para fins de integração, vaguear pelo terminal, desculpem, pelo Chiado, não na companhia dos Waugh, pai ou filho, de Jeffrey Bernard ou, vá lá, de Douglas Murray, mas na das figuras um bocadinho caipiras que, aqui na paróquia, habitam um airoso espaço comum ao “comentário” televisivo e ao poder político, com curiosa inclinação para o PS. E cuja amizade o Francisco – e muito bem – não esconde.
Ao perder a oportunidade do ad hominem, não posso responsabilizar as más companhias pelas convicções profundas do Francisco, por coincidência iguaizinhas às dos seus amigos. Assim, recorro novamente aos factos relatados na crónica inicial. As mencionadas “escutas” apanharam um telefonema em que o dr. Costa informa o dr. Galamba de que a ex-CEO da TAP seria enxotada para aliviar as chatices que se acumulavam em cima do governo. O Francisco acha que semelhantes intimidades não possuem “relevância criminal”, e que o mero interesse público não justifica a divulgação. Eu acho que a conversa demonstra as mentiras cometidas pelos governantes, incluindo na comissão parlamentar (o que constitui crime), para “explicar” o despedimento da senhora. Além disso, parece-me excessivo altruísmo considerar que uma possível indemnização de milhões apenas para salvar o PS não é assunto que diga respeito aos cidadãos.
Conversas à parte, o factor decisivo é o ardor com que o Francisco, imitando os inúmeros ortodoxos que saltam a cada ameaça de escrutínio, assume as dores dos políticos, e das personagens maiores e menores que gravitam em redor dos políticos, contra os “abusos” do sistema judicial. Um estrangeiro que o ouça, e não faltarão ingleses a fazê-lo, imaginará que a classe política, coitadita, vive perseguida por juízes despóticos, que vigiam esses mártires do bem-comum sem pudor nem regras. A realidade discorda. Os eventuais excessos do Ministério Público não equivalem à corrupção, ao compadrio e ao genérico à-vontade de outros ministérios. Por muito que o Francisco, os amigos do Francisco e demais sumidades aflitas finjam o oposto, a discutível impunidade da Justiça não se compara em gravidade e frequência à claríssima impunidade da política. E o escândalo que encenam a pretexto daquela visa assegurar a permanência desta.
A terminar, duas coisas. Primeira coisa: com a excitação, o Francisco chamou à transcrição e divulgação da célebre conversa “um sintoma de uma cultura insuportavelmente antidemocrática”, ficando a um passinho de repetir o bordão em voga e aludir à PIDE. O Francisco devia aprender que, para evitar cair no populismo, não basta subscrever manifestos anti-Trump e malhar no Chega. A segunda coisa é uma nota final: na sacrossanta matéria do segredo de justiça, aliás sobrevalorizado em Portugal face a boa parte do Ocidente, eu escolho a justiça. O Francisco e os que ele representa escolhem o segredo. Afinal, o Francisco está no país certo e eu não. Vai-se a ver e ele é que é o telúrico.