É difícil não olhar para o direito à habitação como um direito fundamental. A habitação representa um espaço físico próprio, vital para podemos satisfazer muitas das nossas necessidades mais básicas e para encontrarmos a segurança, conforto e privacidade que a nossa condição humana exige. Nessa medida, não é possível dissociar o direito à habitação da dignidade da pessoa humana.

Se o reconhecimento da importância do direito à habitação se tem relevado consensual, mais complexa tem sido a discussão em torno das melhores formas para atingir esse desiderato, designadamente do ponto de vista das políticas públicas. Deverá o Estado promover, em larga escala, um parque habitacional público ou limitar-se a subsidiar as rendas dos mais necessitados? Deverá o Estado incentivar a aquisição de habitação própria ou, pelo contrário, o arrendamento de imóveis? As respostas a estas perguntas não são fáceis e dificilmente podem ser dissociadas das nossas conceções ideológicas.

Vale a pena olharmos para a realidade do mercado imobiliário em Portugal. A Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) acaba de publicar um importante estudo sobre esta matéria e que nos ajuda a compreender a realidade portuguesa.

O Estado Português tem um parque público manifestamente reduzido quando comparado com outros países da Europa (representa, atualmente, 2% da totalidade dos alojamentos existentes), situação que o impede de acudir diretamente às necessidades de habitação de grande parte da população. A solução encontrada foi a delegar nos senhorios uma das suas principais responsabilidades, o que foi feito através do congelamento das rendas e da impossibilidade de os senhorios porem termo aos seus arrendamentos (contratos vinculísticos). Alguns economistas defendem a ideia de que, à exceção de um bombardeamento aéreo, a melhor forma de destruir uma cidade é congelar as rendas. Foi o que sucedeu a Lisboa e outras cidades até à entrada deste século. Com os valores exíguos das rendas (muitas vezes insuficientes para cobrir as despesas do imóvel), e amarrados a contratos vinculísticos, muitos senhorios deixaram de ter quaisquer incentivos para preservar os seus imóveis, situação que conduziu à degradação do património das cidades, a que tantos prédios ficassem devolutos e, pior, a que tantos inquilinos ficassem entregues a locados sem um mínimo de condições de habitabilidade.

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Ainda que o regime tenha sido flexibilizado nos últimos anos, sobretudo com o RAU (1990) e o NRAU (2006 e 2012) – situação que explica grande parte da inversão de tendência nas nossas cidades – a instabilidade legislativa que marcou as últimas décadas continua a ser uma ameaça e já conduziu a fortes reversões desde 2016. Os regimes transitórios continuam a ser sucessivamente prorrogados, sempre em prejuízo dos senhorios. O mercado de arrendamento deixou, assim, de ser uma solução atrativa, o que justifica que, atualmente, represente menos de 20% dos alojamentos em Portugal. “Com os congelamentos de rendas e a perpetuação dos contratos de arrendamento, o Estado empurra para os privados as suas responsabilidades sociais e constitucionais no acesso à habitação. Os senhorios, cada vez mais descapitalizados e com os seus edifícios progressivamente mais degradados, convivem com um mercado imobiliário que prospera em todos os segmentos, com a exceção do arrendamento“, conclui o estudo da FFMS. O nosso principal problema – e que justifica, em grande parte, o valor alto das rendas – reside, assim, na falta de oferta.

Poderia ser de outra forma? Poderia – mas teria um custo orçamental. Ao invés de empurrar para cima dos senhorios uma responsabilidade sua, o Estado poderia, por exemplo, subsidiar a parte da renda que as famílias menos abastadas estão impossibilitadas de pagar.

São estas as razões que levam o estudo da FFMS a concluir, drasticamente, que “As políticas públicas e as medidas legislativas das últimas décadas têm vindo a promover e a subsidiar a desigualdade. Simultaneamente, o Estado foi – e é – incapaz de satisfazer a procura, mas contribui para contrair a oferta e descarta as suas responsabilidades sociais para com os privados. Em resumo, o arrendamento urbano continua a definhar e encontra-se num beco sem saída”.

Diga-se que a rigidez do regime é um pau de dois bicos: se por um lado favorece a posição dos arrendatários atuais, por outro prejudica gravemente a posição dos arrendatários potenciais (nomeadamente os mais jovens), que se vêm impossibilitados de aceder a um mercado que mingua a olhos vistos. É por isso que propostas para dificultar ou impossibilitar a resolução de contratos ou para despejar inquilinos – que até podem ser apresentadas com boas intenções (ainda que muitas vezes o sejam com pretensas superioridades morais) – acabam por ser prejudiciais aos seus destinatários.

A rigidez e instabilidade do mercado de arrendamento, associada ao crédito hipotecário fácil e ao desejo de adquirir uma “casa para a vida”, conduziu a uma peculiaridade do nosso mercado: a habitação própria representa aproximadamente 70% (!) dos alojamentos existentes – isto num mundo em que os empregos são cada vez mais voláteis e a estabilidade um dado menos adquirido. Contudo, a política do crédito fácil acabou na sequência da crise financeira de 2008, com o Banco de Portugal a recomendar às instituições financeiras que não financiem mais de 90% do valor de aquisição dos imóveis. Esta política está a levar à inversão da tendência das últimas décadas, impossibilitando os mais pobres (e mesmo a classe média) de adquirirem casa própria, empurrando-os inevitavelmente para um mercado de arrendamento cada vez mais pressionado.

Sem coragem política para enfrentar o problema pela raiz, os nossos governantes têm-se desdobrado em promover programas como o da “renda acessível”. Programas que permitem muito espalhafato político, mas que conduzem a resultados pífios e que em muito pouco contribuem para resolver o problema de fundo. É nesse sentido que, debruçando-se sobre o futuro, o estudo da FFMS critica as opções do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR): “o PRR não apresenta qualquer reforma das políticas de arrendamento urbano, nomeadamente medidas que contribuíssem para atrair investimento com o intuito de aumentar a oferta de habitação a preços acessíveis. A única medida prevista é a promoção pública de 6800 habitações acessíveis, quando é evidente que este número está muito longe das dezenas de milhares de habitações necessárias para gerar uma oferta que responda às necessidades existentes (…).

Se queremos enfrentar o problema da habitação em Portugal, precisamos de um debate menos moralista e mais desapaixonado. A resolução dos nossos problemas de fundo depende mais de políticas sérias e coerentes do que de grandes proclamações e números políticos.