O sexo com que nascemos determina ou não, em parte, aquilo que somos enquanto homens e mulheres? Somos exclusivamente um produto da nossa cultura? Recorrendo à famosa ideia de Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo, 1949), nascemos mulheres/homens ou tornamo-nos mulheres/homens? A resposta a esta pergunta está longe de ser consensual e tem gerado fortes divisões pelos contornos ideológicos que vem adquirindo.

De um lado, temos quem defenda que nascemos “folhas em branco” e que a nossa natureza não influencia os nossos comportamentos. Podemos ser “homens” ou “mulheres”, em função do sexo com que nascemos, e de género “masculino” ou “feminino”, consoantes aquilo que sentimos. O sexo parte da realidade biológica, enquanto o género parte da realidade psicológica e cultural, não tendo necessariamente que existir uma ligação entre ambos. Nessa medida, é possível que um homem se sinta do género feminino ou vice-versa. Mais: a visão binária é de tal modo limitadora para representar a complexidade que cada um de nós encerra, que se torna redutor enquadrar-nos em apenas dois géneros. Daqui resulta não apenas a ideia de que existem vários géneros, como também a de que o género de cada um pode variar ao longo do tempo. A distinção sexo/género é encarada por muitos autores (e.g., Judith Butler ou Shulamith Firestone) como essencial para ultrapassar as atuais estruturas de poder, marcadamente patriarcais e heteronormativas, e alcançar a libertação da mulher.

Do outro, temos quem defenda que o sexo com que nascemos determina significativamente aquilo que somos. A cultura tem influência no nosso desenvolvimento, mas os nossos comportamentos, aptidões, preferências são também determinados pelos nossos cromossomas sexuais – o que explica a semelhança de características e gostos que se tende a verificar entre homens e mulheres. Nessa medida, não se pode afirmar que sexo e género sejam conceitos desligados (somos um corpo, não temos um corpo). É precisamente esta diferença natural que explica que, nos países pioneiros em matéria de igualdade de género – onde, portanto, homens e mulheres são mais livres de escolher em função dos seus gostos reais –, as diferenças entre sexos se tenham acentuado nos últimos anos (na Noruega, por exemplo, 90% dos enfermeiros são mulheres e 90% dos engenheiros são homens).

A questão é sensível e existem, também aqui, estudos para vários gostos. Para responder ao que em baixo se dirá, importa referir que existem diversos estudos nas áreas da genética, psicologia, neurologia ou endocrinologia que corroboram esta última visão, mas o mais fácil será mesmo recomendar a visualização do documentário Hjernevask, um documentário norueguês que veio abalar seriamente os pressupostos das políticas de igualdade de género.

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Tendo em conta esta complexa discussão, o que nos dizem os documentos de orientação pedagógica utilizados nas aulas da famigerada disciplina Cidadania e Desenvolvimento? No Guião destinado ao Pré-Escolar (crianças dos 3 aos 6 anos) podemos ler, por exemplo, que:

“Para além desta visão dicotómica [homem/mulher] não ter qualquer fundamento científico – sendo por isso de toda a conveniência examinar e refletir em torno da origem das eventuais diferenças entre homens e mulheres – a discussão desta problemática ganha ainda maior relevância se pensarmos que a diferença não tem sido sinónimo de diversidade, mas sim de desigualdade, de hierarquia e de posse dissemelhante de poder e de estatuto social”.

“Com base em ideias sem qualquer suporte científico, a família e todos os restantes agentes de socialização continuam a educar de maneira diferente o rapaz e a rapariga para o desempenho dos mais variados papéis ao longo da vida, como se a diferenciação biológica determinasse as características pessoais, as oportunidades de desenvolvimento e os percursos de vida de uns e de outras.”

O que estes excertos põem a nu foi já oportunamente denunciado por Henrique Monteiro: “No citado opúsculo (Guia) são citados apenas autores que dão a ‘ideologia de género’ por boa. Não há um arremedo de contraditório. (…) Em conjunto, todos estes nomes partilham uma ideia legítima, mas muito discutível e já muito rebatida: que todas as diferenças entre homens e mulheres nascem de construções sociais”. É aqui que falece um dos grandes argumentos utilizados pelos que mais defendem a obrigatoriedade da referida disciplina: a disciplina não trata (ou não trata apenas) de direitos humanos; vai além disso.

É difícil medir o impacto que tudo isto pode ter no desenvolvimento de uma criança e no que serão as novas gerações. Mas há dados que não podemos ignorar: em Inglaterra, o número de pedidos de mudança de género aumentou de 97, em 2009-2010, para 2519, em 2017/2018 (um aumento de 2496%), sendo 45 destes pedidos referentes a menores de 6 anos. Repito: 45 destes pedidos eram referentes a menores de 6 anos. Face à brutalidade destes números, há que perguntar se, ao esvaziar as crianças de bases e referências, não estaremos a entregá-las à sua sorte. Fará sentido, num momento em que estas mais precisam de um chão comum e de guias de orientação para se formarem e encontrarem, deixá-las em roda livre?

Ao ver estes números não pude deixar de me recordar do caso dramático dos irmãos gémeos Bruce e Bryan Reimer. Como resposta a uma circuncisão mal executada a Bruce, John Money, um dos percursores das teorias de género, convenceu os pais de Bruce a educarem-no como uma rapariga. Seria o caso perfeito para comprovar a badalada tese. Inicialmente apresentado como um caso de sucesso, Bruce veio a revelar inúmeros problemas de identidade ao longo de toda a sua adolescência (aos 13 anos já ameaçava suicidar-se), tendo-se assumido “homem” após descobrir toda a verdade e submetido a um tratamento para reverter a mudança de sexo aos 32 anos (infelizmente insuficiente para evitar o seu suicídio).

Face a tudo isto, é legitimo e compreensível que muitos pais se sintam desconfortáveis que os seus filhos se encontrem obrigados a frequentar as aulas da disciplina Cidadania e Desenvolvimento. Todos concordamos que homens e mulheres são iguais em dignidade e gozam dos mesmos direitos; nem todos concordamos que masculinidade e feminilidade são meras construções sociais, sem qualquer relação com o sexo biológico. Se num caso estamos no domínio dos princípios estruturantes de um Estado de Direito, no outro estamos num campo fraturante com contornos políticos e ideológicos. É aqui, neste ponto especifico, que todos os defensores da liberdade se deveriam erguer contra a obrigatoriedade de frequência da disciplina (como fez agora corajosamente um conjunto de 100 personalidades), do mesmo modo que o deveriam fazer (e bem) caso o Estado impusesse, amanhã, a obrigatoriedade de uma disciplina de Religião ou Cristianismo. A discussão em curso não pode ser apenas sobre o desfecho do caso dos dois alunos do Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco; deverá ser sobre o fim imediato da obrigatoriedade da disciplina Cidadania e Desenvolvimento, pelo menos nas matérias em que a ideologia esteja à espreita.