A nossa vida coletiva é feita de mercados, instituições e comportamentos que, nas suas múltiplas e complexas interações, compõem a relação paradigmática entre o ator e o sistema. O equilíbrio é muito delicado, o caminho muito estreito, e, tudo leva a crer, estamos cada vez mais próximos de uma nova disrupção paradigmática que, como sabemos, se insinua e revela de muitas maneiras. Com efeito, as grandes transições e os seus impactos assimétricos anunciam uma policrise abrangente. Quando comparamos a retórica política com esta policrise anunciada não podemos deixar de ficar assustados com as disfuncionalidades da atividade política perante estas ameaças abrangentes. Lembremos algumas dessas grandes transformações disruptivas e seus efeitos assimétricos.
Em primeiro lugar, as alterações climáticas, os seus custos económicos e os fluxos de refugiados ambientais. Em segundo lugar, as novas pandemias, os seus custos económicos e os efeitos de contaminação e contágio sobre a saúde pública. Em terceiro lugar, as rivalidades e tensões geopolíticas e os custos económicos e humanos das guerras entre proxies, como agora se comprova facilmente. Em quarto lugar, o regresso à energia nuclear civil, desta vez à energia de fusão para abreviar a transição energética. Em quinto lugar, as tecnologias de sequestro e captura de carbono, bem como do hidrogénio verde, e os seus custos de conversão. Em sexto lugar, os nano materiais e a biologia sintética. Em sétimo lugar, a automação, a robótica e a inteligência artificial com todos os seus desenvolvimentos, em especial, a sua associação com a computação quântica. Por último, uma alteração substancial das vantagens comparativas e competitivas que estes custos acarretam, sobretudo, os custos de contexto, os custos de oportunidade e os custos de cobertura de riscos.
Dito isto, no plano científico e tecnológico, tudo pode acontecer, isto é, os cisnes negros começam a alinhar-se e as grandes descobertas podem coexistir com os grandes acidentes. Com efeito, os mercados regurgitam com estas inovações, as instituições procuram afanosamente uma nova função regulatória para estes mercados como acontece neste momento na União Europeia com a inteligência artificial, os comportamentos procuram ajustar-se às novas exigências aumentando o conhecimento e a sua mobilidade socioprofissional.
Entretanto, no plano da socio-economia, estas grandes transformações provocam inúmeras fricções de ajustamento e adaptação e as suas consequências já estão à vista de todos: as crises de dívida pública e privada põem em causa o Estado social e agravam as desigualdades de riqueza e rendimento, o declínio demográfico, associado à emigração da população jovem, faz aumentar os fluxos migratórios, a estagflação e os juros altos faz encolher a classe média, aumenta o descontentamento popular e conduz à criação de movimentos e partidos populistas e regimes autocráticos, o crescimento da corrução aumenta a deceção com a política, por fim, a convergência destes fatores reduz a soberania e credibilidade políticas, bem como o alinhamento forçado por certos blocos geopolíticos.
Aqui chegados, qual é a velocidade que cada sociedade vai adotar para operar, com um mínimo de danos colaterais, estas grandes transformações, sob pena de os mercados colidirem de frente contra as instituições e os comportamentos e provocarem a disrupção total entre o ator e o sistema?
No plano europeu, só a União Europeia pode dar uma resposta satisfatória a esta interrogação, pois só ela tem os meios e os recursos para formar uma verdadeira comunidade de risco e mutualizar as suas consequências mais gravosas, como, aliás, se comprovou com a abordagem feita à covid-19. Como sabemos, os mercados correm mais velozes do que as instituições e os comportamentos, razão pela qual as funções regulamentar e regulatória, mas, também, distributiva são imprescindíveis para manter a coesão política do conjunto europeu.
Um exemplo concreto do que afirmo tem a ver com a legislação em curso para regular os impactos da inteligência artificial. No passado dia 13 de fevereiro de 2024 foi aprovado um quadro jurídico único na União Europeia, um acordo ainda provisório, com as regras em matéria de gestão e regulação da inteligência artificial, uma espécie de manual de instruções. A votação final será realizada em abril na assembleia parlamentar europeia. Entretanto, no início de janeiro, foi criado um Gabinete Europeu de Inteligência Artificial com o objetivo de supervisionar o desenvolvimento, a utilização e a regulamentação das tecnologias de IA no espaço europeu. Em causa o equilíbrio delicado entre benefícios e custos, a proteção do interesse público e dos direitos fundamentais dos cidadãos, assim como a dimensão da pegada digital e energética que tal acarreta. Resta dizer que os representantes dos 27 Estados membros aprovaram por unanimidade este acordo provisório único.
Qual o significado desta decisão histórica da União Europeia?
Julgo que precisamos, urgentemente, de nos reencontrar com as dimensões espaço-tempo da nossa vida coletiva, pois esta desconstrução destrói uma parte importante do sistema de produção e do regime de trabalho associado. O homem, ou seja, uma franja importante da sociedade, corre o risco de soçobrar com a automação, as máquinas inteligentes e a inteligência artificial. Este triângulo mágico ameaça a nossa sanidade mental e os direitos humanos, pois corremos o risco de os inativos crónicos começarem a aparecer em vez dos desempregados temporários. Estamos perante um verdadeiro problema intergeracional e uma mudança civilizacional de grande alcance.
Precisamos urgentemente de um novo pensamento político para evitar o colapso da sociedade e o risco de disrupção entre o ator e o sistema. Precisamos de impedir a implosão das dimensões espaço-tempo, a crise da alteridade, a crise da urgência, a prevalência da instantaneidade. Precisamos de impedir que haja uma espécie de miniaturização da política e a ascensão de uma sociedade de híper vigilância. Nunca esqueçamos que uma coisa é o progresso, outra é a propaganda do progresso e o fundamentalismo tecnológico. A propósito do que aqui se diz, convido os leitores a relerem duas obras de referência de dois autores fundamentais ambas de 1944: A Grande Transformação de Karl Polanyi e o Caminho para a Servidão de Friedrich von Hayek.