O meu avô costumava contar-me histórias, em longos passeios pela serra, na Beira Baixa. As cataratas já não o deixavam ver tudo, mas eu avisava-o das raízes e pedras que se atravessavam no carreiro que nos levava às mais recônditas propriedades e hortas da família, onde outrora floresceram pereiras e laranjeiras e onde, à beira de um poço, o meu avô cultivava morangos tão doces como nunca mais comi. Serras e hortas hoje comidas pelo abandono, entre eucaliptos, silvas e pinheiros queimados. Era por isso que ele dizia à minha avó que eu era os seus “olhinhos”, que o protegiam de quedas e abismos que se interpunham nos nossos passeios.
Não raras vezes as histórias que me contava eram fábulas e muitas vezes incluíam na narrativa meninos e velhos. E sempre, sempre o lobo.
A figura do lobo assustava-me. Nunca vira nenhum, mas lembro-me de o imaginar escondido nas sombras das árvores onde apanhávamos míscaros ou atrás dos penedos redondos, que estranhamente a natureza tinha posto no cimo de montes, às vezes cobertos de musgo.
O lobo assustava-me, mesmo que o nunca tenha visto. Nem era preciso apelidá-lo de mau, porque um lobo é apenas um lobo. Mata pela sobrevivência. O lobo não mata para ver morrer, mata para viver.
Assustava-me porque, sendo eu os olhinhos do meu avô, não sabia se me chegava vê-lo para nos salvar. E ao meu avô, faltava já a força, muitas vezes, para soprar a chama do candeeiro a petróleo que à noite nos iluminava e que ajudava os meus olhinhos nos trabalhos de casa da primeira classe.
O passeio com o meu avô, de mão dada, era um risco mais imaginário do que real. Mas era um risco que compensava, porque era a luz, a sombra e a palavra que à noite faltava numa aldeia da Beira Baixa, num tempo que mal esperava pela revolução.
Na minha aldeia, vivia-se até muito tarde. Morria-se muito tarde. E havia muita gente que se matava. Como a senhora da casa da frente, redondinha e pequena, como todas as mulheres da Beira Baixa, naquele tempo.
Com um cordel puxado com força, arrancávamos um pequeno motor Honda a gasolina normal, para gerar a eletricidade suficiente para vermos o Telejornal, a tourada e raras raras vezes um jogo de futebol.
Em minha casa, juntavam-se os homens da aldeia, nesses dias. Uns espantados com a caixa mágica que lhes manipulava então já a consciência, outros, mais habituados, viajavam naqueles minutos ou horas por um mundo que nunca veriam. Um mundo, ainda assim, estreito e selecionado.
Na minha aldeia, vivia-se até muito tarde. Morria-se muito tarde. E havia muita gente que se matava. Como a senhora da casa da frente, redondinha e pequena, como todas as mulheres da Beira Baixa, naquele tempo. Lembro-me de ouvi-la queixar-se da vida e temer o Inverno que estava a chegar. Lembro-me de a ouvir temer a morte e, com o temor de morrer, decidir matar-se. Era o remédio dos ratos que resolvia a vida e matava os velhos suicidas, naqueles tempos, na aldeia. Sobretudo as velhas, viúvas, de preto até ao fim. Escolhiam o dia da eutanásia, normalmente no Outono ou na Primavera. Nunca soube porquê. “Matou-se”.
Outros resistiam entre copos e fumos em mortalhas enrolados. E recordavam-me quem lhes tinha ensinado as letras e os algarismos. Os meus avós, o meu avô, de quem era eu agora os “olhinhos”, tinham sido a luz de milhares de pessoas por aqueles “cabeços”, onde aldeias perdidas as acolhiam.
Morriam matados ou morriam aos 100 anos ou sabe-se lá quantos e de “velhice”, causa de morte abandonada na modernidade científica. Mas nunca ouvi que algum tivesse sido morto pelo invisível lobo, que atormentava a avozinha do Capuchinho Vermelho e a mim também.
De mão dada com o meu avô, ouvindo as suas histórias, aprendi a temer o invisível e a medir o risco. E aprendi muito mais.
Duas das histórias eram recorrentes. A do Pedro e do Lobo e uma outra, que para mim era sempre a mais violenta, mas que devo ter ouvido centenas de vezes nesses passeios cheios de rosmaninho que me inundava as narinas e dos sons da montanha onde moravam mochos e pardais. Contava-me que, antigamente, quando os velhos se tornavam um estorvo, os filhos os levavam às costas até à Serra e lá os deixavam, para serem comidos pelos lobos e morrerem longe dos seus olhos.
Talvez para sossegar a consciência, um desses filhos levou uma manta, com que cobriu o pai, inválido. Ao deixá-lo na serra, ouviu o pai chamar. Tinha rasgado ao meio a manta, oferecendo metade ao filho. “Porque me dá metade da sua manta pai? Vai ter frio”. Sempre com uma voz meiga, o velho explicou ao filho que guardasse aquela metade de manta, pois dela poderia precisar quando, já velho, um dia fosse abandonado na serra para ser comido pelos lobos.
A divisão da manta tem fundamento mitológico. A moral da história era benigna: “nunca mais ninguém abandonou velhos na serra, depois desse dia”. Creio que esta parte da história era, apenas, uma forma do meu avô sossegar os meus olhinhos que, por vezes, se enchiam de lágrimas. Mas não era a verdade.
O meu avô, como a minha avó já morreram. Nunca foram deixados na Serra pelas suas filhas que, como eles, eram professoras. Também elas portadoras das histórias do meu avô. E da moral.
O meu avô morreu no Hospital de São José, em Lisboa, para onde foi levado com a maldita doença na sua garganta de fumador. No seu leito, dizem-me que chamava por mim e eu nunca apareci, senão quando ele dormia. Queria, seguramente, ver pelos meus olhinhos, as raízes e pedras do caminho. Nunca lhe pude dizer como gostava dele e que nunca esqueceria as histórias que me contava. Tenho tanta pena de não lho ter dito.
Antes de morrer, quando já nada havia a fazer, contam-me que lhe deram a refeição no hospital que tinha o seu nome, José, através por um tubo. “Para quê isso”, terá perguntado alguém da família consciente da inevitabilidade da morte iminente. A resposta da enfermeira foi simples e óbvia, “porque enquanto houver vida…”. Enquanto houver vida há calor, há dignidade e há uma manta inteira que nos cobre. A eutanásia do abandono, deixando ao lobo carrasco a escolha do momento, pode servir para dizer que não fomos nós, mas não nos desculpa no dia do Juízo. Seja esse dia o que for. Seja qual for a nossa crença.
Só recuando ao século XIX chegamos ao ano de nascimento do meu avô, que cavalgou com o último Rei de Portugal por coutadas de Vila Viçosa a Castelo Branco, à procura de raposas, lebres e perdizes. Daí sobraram charutos cintados com brasão real que ainda vi e se desfizeram lá por casa. Quem sabe o meu avô contou a Dom Manuel II as suas histórias. Quem sabe as ouviu ao Rei.
Tenho pena de não lhe ter nunca perguntado porque chamava a Dom Manuel “o Patriota”. Rei que chegara ao trono vendo morrer, assassinado, o seu pai. Ele próprio morreu novo, em Londres, longe do poder real e, seguramente, enrolado numa manta. Nunca saberei ao certo porque morreu em Londres um patriota, por mais que a História nos conte. Não saberia explicar, seguramente, se depois dele, voltou a haver patriotas em Portugal.
Perdizes, lebres e raposas eram a caça que traziam penduradas dessas caçadas reais que o meu nobre avô me contava. Mas nunca caçaram o lobo. Nunca o invisível lobo era pendurado nos alforges no regresso a casa, onde se protegiam as três filhas, minha mãe e tias. Raposas sim, mesmo as matreiras, acabam por sucumbir ao tiro da caçadeira e ao faro dos perdigueiros.
Talvez por isso, hoje, o lobo continue, por aí, e a perseguir velhos deixados no cimo das serras. Nas serras onde continuam, contra a moral da história, a ser abandonados.
Esqueceram-se que nunca ninguém, realmente, matou o lobo que não se mostra mas existe. E mata. A mentira do Pedro, o desprezo pela vida e pela dignidade dos velhos ainda é o que era.
Hoje não saio para ir à serra passear com o meu avô que atravessou duas Repúblicas mas já não assistiu, comigo, à terceira que se iniciou numa madrugada de Abril. Dormia, quando a minha avó me despertou no grande quarto de paredes rosa, quase vermelho, em que dormia, ao cimo das longas escadas de pedra da minha casa da aldeia.
“Houve uma revolução”, segredou a minha avó com um beijo, enquanto uma luz intensa entrava pela enorme janela. Colei-me ao rádio, aprendendo palavras novas como exílio ou nomes como Otelo. Começava uma nova era onde nos prometiam liberdade, verdade e a fraternidade. Essas eram as palavras que, em princípio, deveriam ter destruído até aos dias de hoje mitos como os do Pedro e o Lobo e como o do abandono de velhotes à morte, embora aquecidos com uma manta ou metade dela.
Esqueceram-se que nunca ninguém, realmente, matou o lobo que não se mostra mas existe. E mata.
A mentira do Pedro, o desprezo pela vida e pela dignidade dos velhos ainda é o que era. E como ouvi um dia a Jaime Nogueira Pinto, “a natureza humana não muda. O que muda é a sociologia, mas a natureza cruel do homem, persiste”.
A do homem e a do lobo, que hoje se esconde num vírus que também não vemos, mas tememos. Que nunca caçamos, mas que usamos. E que, sempre que nos cansamos dele, ignoramos, como quem deposita o pai na serra e lhe deixa uma manta, à espera do momento certo, que o lobo escolhe.
Se este novo lobo comesse o capuchino vermelho, não deixaríamos. Tudo faríamos para imitarmos o caçador que o abatia, munidos de uma espingarda de dois canos, que dispararíamos do alto do nosso lusitano, enquanto no canto da boca queimaríamos um cubano com cinta real. E, assim, seríamos os heróis salvadores da moral da história, guardando a geração em flor, garantindo o futuro. O nosso futuro, confiando que a geração seguinte nos protegerá quando já não servirmos para nada. Desafiando a natureza humana.
Mas não é assim. O lobo mata os velhos. Na história do Capuchinho Vermelho, a avozinha é apenas um salvamento circunstancial. Um efeito colateral do resgate infantil. Eventualmente, pode até ficar esquecida dentro do armário onde o lobo a escondeu, em nome da carne tenra da neta. É que a história termina com o tiro certeiro do herói no lobo e no resgate da criança vestida de vermelho, nada dizendo sobre o destino da velhota.
Por alguma razão a bonita história do Capuchinho Vermelho resistiu aos séculos e por alguma razão o meu avô nunca ma contou.
O vírus é mau como o lobo. É invisível. Nunca é caçado. E é irónico como o são todos os Deuses. Perdoem-me os católicos que me leem. Não é ao vosso Deus que me refiro. Mas aos gregos, que sempre carregam consigo o poder de salvar ou destruir. O poder da escolha que, criteriosamente exercem, amedrontando. No seu mundo, são eles que mandam, que ditam o tempo e as tempestades. Que espalham a morte ou o amor.
Para ser Deus, o vírus tem de ser irónico. E é. Põe a nu as nossas próprias escolhas, exacerba as nossas desconfianças e egoísmos, sublinha o preconceito. Confronta-nos com tudo isto. Afasta-nos de quem queremos ajudar. Dá-nos desculpas para sermos relapsos. Provoca-nos e expõe-nos à natureza humana.
O vírus é um Deus. Escolhe criteriosamente quem mata. Faz sofrer. Isola e brinca com os seus próprios efeitos. Não é matreiro como a raposa. É objetivo como o lobo. O vírus também não quer matar. O vírus só quer viver. Precisa do hospedeiro. Mata o mais fraco por efeito colateral. Mas é nos mais fortes que sobrevive. Que perdura. Nós, os novos, em conveniente sociedade com o vírus, somos os culpados do seu transporte.
Mas, para ser Deus, o vírus tem de ser irónico. E é. Põe a nu as nossas próprias escolhas, exacerba as nossas desconfianças e egoísmos, sublinha o preconceito. Confronta-nos com tudo isto. Afasta-nos de quem queremos ajudar. Dá-nos desculpas para sermos relapsos. Provoca-nos e expõe-nos à natureza humana, que confrontada com a guerra, hesita sobre se vale a pena travá-la quando sabemos que só morrerão reservistas, que só consomem sem pegar nas armas. E que, em princípio, estamos a salvo.
Por estes dias, deixamos velhotes nas serras. Muitos. Milhares. Damos-lhes mantas. Talvez até uma sopa que nos sossegue a consciência. Mas, caramba, a vida tem de continuar. Talvez eles percebam isso, como percebeu aquele pai que rasgou a manta, num gesto de compaixão pelo filho que há-de ser pai, que há-de ser velho.
Serei o único a não ter gostado do que ouvimos a um ex-Presidente da República, dizendo que eles “os velhos” terão que saber dar o seu ventilador ao pai de filhos, se precisar. Afirmação aproximada à do Governador do Texas, que terá afirmado que talvez os velhos não se importem de morrer para salvar a economia. Esta última tão criticada. A primeira tão elogiada.
Não é coisa que se diga, porque a nobreza humana não reside na equação aritmética da salvação da economia. Nem sequer da salvação da espécie. A salvação da espécie é um instinto universal de todos os seres vivos. Mas ele é inconsciente, é instinto, não pode ser a escolha seletiva de ninguém. Nem dos próprios, pois disso se aproxima o nazismo e a ideia da pureza da espécie.
Seriamos tão diferentes nestes tempos, se o vírus matasse crianças. Ou se o vírus atingisse a força de trabalho do reino. Os cavaleiros pegariam nas caçadeiras, montariam os seus lusitanos e todos os perdigueiros do mundo serviriam para farejar o lobo mau.
Não assistiríamos, com a indiferença conveniente do zapping, a um lar de infetados que é deixado à sua sorte três ou quatro dias, sem cuidadores, sem médicos, sem enfermeiros, sem políticos com coragem, sem medidas. Esperando que o lobo, rapidamente, tome conta da história e, sozinho, faça o seu trabalho. Em silêncio, já agora. Afinal, é para isso que ele serve. Diremos que a culpa foi dele. O que nos sossega.
Fossem crianças. Imaginam? Fossem adultos na flor da idade. Imaginam? Seria possível? Toleraríamos?
Não me tenham por moralista. Não o sou. Sem culpa ou com culpa, consomem-me arrependimentos. O de não ter sido os olhinhos do meu avô até ao fim, quando morreu sem me ver no São José. O de não ter sido mais para o meu pai velho, tanto quanto ele merecia por ser velho, mesmo não merecendo como pai. Também eu sofro do mal com que a natureza humana nos confronta. Como todos nós, também eu dou por mim a pensar onde tudo isto nos leva, como podemos contornar o lobo e vivermos, aceitando as baixas, pensando no dia da libertação. Passando, em pensamento, por cima da morte dos velhos. Também eu penso, como Trump, quantas mortes a penúria económica fará por não sermos capazes de viver e produzir por causa de um vírus. Valerá a pena fazermos essas contas? É o que pergunto.
Acontece que não é Trump quem manda, nem Marcelo, nem Costa. Quem manda é o vírus. É ele que dirá se podemos ou não sair à rua. E por mais cruéis que possamos ser e achar que o país não foi feito para estar fechado, por mais que queiramos seguir em frente, o espectro irremediável da morte nunca vai deixar que, em massa, despejemos velhos nas serras. A moral da história há-de consumir-nos as consciências, enquanto o vírus quiser. Enquanto o Deus quiser. Por mais que nos digam que este país não é para velhos.
Enquanto ele quiser, haverá mortos e haverá vivos estúpidos para traçar linhas. Provando que os meus mortos são menos que os do vizinho. E que eram todos velhos. Doentes até. Quem os queria?
Talvez possamos, até, com algum jeito, no fim de tudo isto, recuperar a velha causa de morte e dizer que todos morreram de velhice. Talvez possamos dizer que ganhamos a guerra. Talvez possamos dizer que a morte daqueles velhos, só daqueles que não nenhum de nós, foi um milagre chamado Portugal. Talvez possamos voltar todos à rua para comemorar em selfie a liberdade, já na próxima semana, com ou sem máscara, com ou sem verdade. Talvez possamos continuar a ser nós próprios. Nunca nos podemos esquecer é das histórias do meu avô. A do Pedro e do Lobo e a outra. E de guardar a metade da manta que nos deixarem os velhos. Ela vai fazer-nos falta.