Múltiplos livros, bandas desenhadas, jogos e filmes de ficção científica são baseados em mundos digitais alternativos, indistinguíveis do mundo real e físico. Como é possível constatar através dos atuais avanços tecnológicos, nunca passaram disso mesmo, ou seja, de ficção.

Aliás, perante os escassos avanços tecnológicos nesta matéria (pelo menos, aqueles que são divulgados ao público), os atuais espaços virtuais têm mais em comum com os cenários de jogos electrónicos do que, propriamente, com a vida real.

Atualmente, as pessoas interagem através de páginas de internet/aplicações informáticas associadas a plataformas de redes sociais (como, por exemplo, o Facebook, o Instagram ou o Twitter) ou através de aplicações multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz (como, por exemplo, o Whatsapp ou o Telegram).

Assim, talvez em resultado da frustração das expectativas criadas pela ficção, o interesse por produtos relativos a realidades virtuais (como, por exemplo, o Second Life) ou aumentadas (através do Google Glass, por exemplo) tende a ser efémero.

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Porém, desta vez, o cenário aparenta ser diferente.

Diversos investidores e empresas do sector tecnológico têm vindo a manifestar interesse em desenvolver um mundo virtual que, ao que tudo indica, poderá significar a próxima fase de desenvolvimento da própria internet.

No dia 28 de Outubro de 2021, através de uma publicação na sua página de Facebook apelidada de founder’s letter, Marc Zuckerberg anunciou a alteração da denominação da sua empresa, concretamente de “Facebook, Inc.” para “Meta Platforms, Inc.”. Com isso, a denominação comercial deixou de ser “Facebook” e passou a ser “Meta”.

Esta estratégia de marketing, ou seja, este rebranding, além de desviar as atenções das recentes pressões exercídas pelos reguladores (tanto nos EUA, como na UE), ainda direciona essas mesmas atenções para a nova prioridade da empresa: a criação de uma realidade virtual, isto é, um metaverso.

O investimento realizado pelo Facebook na produção e comercialização de uns headsets de realidade virtual apelidados de Oculus Quest, é um exemplo dessa nova prioridade.

Também Timothy D. Sweeney, criador e CEO da Epic Games, Inc., empresa que desenvolve jogos eletrónicos (sendo o Fortnite o mais conhecido), perante os rumores relativos ao anúncio de Mark Zuckerberg, incentivou igualmente a criação de um metaverso.

Os jogos electrónicos on-line de multiplayers, como, por exemplo, o Fortnite, disponibilizam mundos partilhados e interactivos há décadas. Apesar de não se tratarem de metaversos, existem alguns princípios base em comum. Tanto existem que, nos últimos anos (especialmente nos últimos dois, em virtude da aplicação de medidas restritivas de confinamento obrigatório resultantes da pandemia de COVID-19), o Fortnite tem expandido o seu produto através da realização de concertos, eventos para divulgação de marcas, entre outros, tudo através do seu próprio mundo digital.

A propósito das medidas restritivas de confinamento obrigatório, tudo indica que também contribuem para a aceitação e intensificação do interesse e desenvolvimento deste fenómeno. Com a trivialização do teletrabalho, ou mesmo das aulas à distância, as condições de interação on-line tendem a ser cada vez mais valorizadas.

Mas não só. Basta pensar no tipo de eventos que, durante a pandemia de COVID-19, foram realizados através de softwares de videoconferência, com diversos participantes à distância, independentemente da sua localização geográfica. Desde festas de aniversário, a aulas de fitness ou de outro tipo de desportos, casamentos e até mesmo diligências em tribunal.

Como se não bastasse, a implementação de redes móveis e de banda larga 5G (que diminui a latência), bem como a discussão à volta da eventual substituição da moeda física tradicional com curso legal por uma moeda digital (que facilita os negócios virtuais), parecem igualmente contribuir para a intensificação do desenvolvimento deste fenómeno.

O conceito de metaverso tornou-se, assim, a buzzword no sector empresarial e tecnológico. Mas, afinal, esse conceito significa exactamente o quê e, além disso, quais são as questões jurídicas que, mais do que nunca, devem despertar a atenção dos reguladores?

O conceito de metaverso

Relativamente à primeira questão, verifica-se que estamos perante um conceito amplo. Genericamente, consiste num espaço ou conjunto de espaços virtuais e partilhados (vulgarmente apelidados de mundos/ambientes digitais/virtuais), onde os utilizadores, representados por avatares em 3D, conseguem entrar e interagir através dos seus headsets (e outros possíveis acessórios), desde que disponham de acesso à internet. Esses espaços consistem no uso de realidade virtual (virtual reality – VR) e/ou realidade aumentada (augmented reality – AR).

Ao contrário da atual tecnologia de realidade virtual, que é maioritariamente utilizada para jogos electrónicos, a tecnologia que se pretende alcançar poderá ser utilizada para simular praticamente todas as situações associadas ao mundo físico, desde o exercício de atividades profissionais, até concertos virtuais, salas de cinema on-line ou mesmo, tão-só e simplesmente, desfrutar de algum tempo com amigos.

O objectivo passa por eliminar as fronteiras entre o mundo físico e a realidade virtual, podendo os utilizadores interagir com objectos virtuais através do mundo físico e vice-versa, tendo, com isso, a possibilidade de tratar qualquer informação em tempo real.

A propósito da informação em tempo real, refira-se que o metaverso pode ainda incluir a utilização de tecnologia blockchain, podendo os utilizadores proceder à compra e venda de criptoativos infungíveis (vulgarmente apelidados de ativos digitais ou virtuais, como, por exemplo, os non-fungible-tokens – NFTs) através de criptoativos fungíveis (vulgarmente apelidados de criptomoedas, como a Bitcoin, que servem de método de pagamento), o que pode suceder, por exemplo, através de galerias virtuais de arte digital (que oferecem NFTs apelidados de digital collectibles), acessíveis via headsets e eventuais acessórios.

No âmbito de um blockchain-based virtual world, com uma virtual economy, os criptoativos emitidos através de tecnologia blockchain, além de permitirem a representação digital de produtos financeiros fungíveis (como, por exemplo, valores monetários ou mesmo acções de empresas), permitem ainda a representação digital de produtos não financeiros infungíveis (NFTs), quer se tratem de hard assets, isto é tangíveis e físicos (como por exemplo, bens imóveis ou mesmo móveis, como um veículo automóvel ou uma pintura), quer se trate de soft assets, isto é bens intangíveis ou digitais (como aplicações informáticas, peças de arte digitais – digital collectibles, ou mesmo virtual real estate). As possibilidades são virtualmente ilimitadas.

Em síntese, com a implementação de um metaverso, são criados novos espaços on-line (que, ao longo do tempo, serão cada vez mais valorizados e procurados), nos quais os utilizadores podem interagir de forma multidimensional, ou seja, ao invés de simplesmente visualizarem o conteúdo, podem imergir no conteúdo digital através das respectivas representações digitais.

O que deve merecer a atenção dos reguladores

O que nos leva à segunda questão, ou seja, quais são as questões jurídicas que, face ao até agora exposto, mais do que nunca devem despertar a atenção dos reguladores. Neste caso, colocam-se, entre muitas outras, questões relacionadas com diversos ramos de Direito e múltiplos sectores de atividade, como, a título de exemplo, as relacionadas com propriedade intelectual, protecção de dados e também com os próprios NFTs.

Desde logo, imagine-se que no âmbito de determinada realidade virtual, em determinado espaço virtual, dois ou mais criadores de conteúdo, ou mesmo meros utilizadores, colaboram e contribuem para a criação de um ativo digital dentro de um espaço digital ou mesmo para a criação de outro espaço digital. Quem é o proprietário intelectual (ou virtual?) desses ativos ou desse espaço e em que termos? Os seus direitos de autor encontram-se salvaguardados? Além disso é possível criar, proteger e publicitar marcas num mundo virtual? Quais são os mecanismos que os criadores de conteúdo/utilizadores podem usar para proteger a sua marca no mundo virtual?

Por outro lado, uma vez que as pessoas tenderão a passar a maioria do seu tempo de vida (quer estejam acordados ou a dormir) no metaverso, quem será o proprietário dos dados resultantes da atividade dessas pessoas?

Quem vai garantir a protecção da identidade e privacidade das pessoas?

O que sucede no caso de a nossa informação ou identidade serem desviadas?

Quem é o responsável e em que termos?

É que, até à presente data, tivemos apenas oportunidade de constatar a criação e emissão de determinados criptoativos relacionados com determinados e específicos sectores de atividade.

Imagine-se que, a curto prazo, é criada uma espécie de sociedade virtual paralela e, com isso, são criados e emitidos criptoativos que, de forma virtual, representam todos os objectos possíveis e existentes, cidades, regiões, países ou mesmo mundos inteiros e todos conectados. No âmbito desse mundo virtual, quem apresenta capacidade jurídica virtual? Ou seja, quem pode comprar e vender? Os métodos de pagamento são criptomoedas? Existem instrumentos financeiros? Quem regula esse mundo virtual?

São estas as questões que, entre muitas outras, se colocam e que, para já, permanecem sem resposta ou com respostas inconclusivas.

Como é sabido, os reguladores devem acompanhar o progresso de novas tecnologias, essencialmente com vista a salvaguardar e a garantir a segurança tanto da vida das pessoas, como do próprio comércio jurídico.

Esse acompanhamento consiste (ou devia consistir), principalmente, na tentativa de conceptualização e de compreensão do potencial funcional e transformacional das questões e implicações jurídicas resultantes dessas novas tecnologias.

Nesse sentido, há quem diga que o metaverso deve ser simplesmente enquadrado com os quadros legais existentes. Mas, também, há quem diga que deve ser criado um ordenamento jurídico apenas para regular o metaverso.

Tudo indica, porém, que os reguladores procuram manter uma posição semelhante à posição assumida aquando do aumento da notoriedade da tecnologia blockchain e da Bitcoin, ou seja, inicialmente procuram conceptualizar e compreender.

Resta saber até quando será possível manter essa posição. Provavelmente, até ao dia em que a imprensa divulgue alguma “tragédia” relacionada com o metaverso, que desperte a atenção do público geral e, com isso, suscite determinada reação política. Ou será alguém, através da sua atividade, a despoletar essa reação?