Vivemos em tempos interessantes.

Nas últimas semanas a internet tem sido inundada de notícias sobre os avanços tecnológicos no sector da inteligência artificial (IA), em concreto sobre o lançamento do GPT-4 (sem esquecer, claro, o lançamento da Bing AI ou, mesmo, do Google Bard).

O lançamento deste tipo de sistemas de IA generativa promete revolucionar a maneira como a sociedade interage com a tecnologia (e vice-versa?). Além de melhorar a experiência do usuário em termos de eficiência, apresenta funcionalidades e caraterísticas para impulsionar múltiplos setores a uma velocidade estonteante e num rácio que excede todas as previsões.

Sucede que a IA, além de apresentar argumentos para impulsionar determinados setores, parece também apresentar cada vez mais argumentos para dominá-los.

Curiosamente, existem atualmente dois processos judiciais a decorrer nos EUA cujo desfecho pode vir a contribuir (ou não) para esse domínio.

Recentemente, Stephen Thaler, um cientista de computação, apresentou uma petição junto do Supremo Tribunal dos EUA a defender que, de acordo com a Patent Act, as patentes de invenções podem ser legalmente atribuídas a sistemas baseados em IA enquanto inventores, ao invés de apenas a inventores humanos.

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Stephen Thaler argumenta que a IA é uma farramenta essencial para múltiplos domínios, tais como a saúde ou a energia, e promove a inovação. Segundo a sua lógica, negar a atribuição de patentes a invenções criadas por sistemas baseados em IA afeta a eficiência do sistema de patentes cujo principal propósito reside na promoção do progresso e avanço tecnológico.

O cientista defende ainda que a definição de inventor constante da Patent Act não se encontra limitada a seres humanos e que a linguagem utilizada neste tipo de leis devia ser flexível o suficiente para ser adaptada aos avanços tecnológicos.

Em caso de sucesso, quais são as consequências em termos laborais, sociais e culturais? Quanto tempo irá demorar até não existir um único inventor humano? A criatividade original do “inventor humano” irá ficar limitada à programação deste tipo de sistema, via mera introdução de dados/algoritmos? E, em geral, a criatividade original irá depender exclusivamente da qualidade e capacidade de processamento do sistema em causa, ou seja, dos recursos económicos do proprietário do “inventor artificial”?

São questões que, para já, ficam sem resposta.

Outro caso digno de menção é a batalha judicial que a DoNotPay (a startup responsável pela criação do “primeiro robô-advogado do mundo”) irá enfrentar nos próximos tempos.

Os autores da ação coletiva alegam que o rótulo de “primeiro robô-advogado do mundo”, além de incorreto, é ilegal, pois o robô da DoNotPay não tem qualquer licenciatura em Direito, não tem licença para praticar atos de advogado em nenhuma jurisdição e, além disso, opera sem a supervisão de um advogado e sem apresentar as necessárias qualificações para o efeito.

Segundo a ação coletiva, a DoNotPay não passa de um mero website que fornece um conjunto de minutas legais de baixa qualidade e preenchidas com base na informação disponibilizada pelos clientes.

Entretanto, o CEO da DoNotPay já reagiu através do Twitter, afirmando que talvez até utilizem o seu rôbo-advogado para se defenderem no âmbito deste caso…

Será sensato descaraterizar e desumanizar o processo judicial, cujas relações interpessoais se afiguram essenciais para a salvaguarda da sua “função simbólica clássica”? Qual será o resultado dessa descaraterização e desumanização nas cada vez mais “frágeis” relações interpessoais, essenciais para “a formação e transmissão de valores, cultura e identidade”, como tão bem alertou o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) no discurso de abertura do XII Congresso dos Juízes Portugueses a propósito da utilização de inteligência artificial nos tribunais?

Novamente, estamos perante questões que, por ora, ficam sem resposta.

E estes, são apenas dois de inúmeros e preocupantes exemplos.

Vivemos, pois, em tempos interessantes. Como nos diz a sabedoria chinesa: “é uma maldição viver em tempos interessantes”.