Depois de amanhã, 9 de Março, Aníbal Cavaco Silva deixará a Presidência da República, concluindo uma das mais longas carreiras políticas da nossa democracia. E também uma das mais triunfantes: quatro maiorias absolutas, dez anos como primeiro-ministro (1985-1995), dez anos como Presidente da República (2006-2016), além de ter sido ministro das Finanças de Sá Carneiro (1980-81). No entanto, esta carreira triunfante parece terminar em solidão: são raras as vozes que o defendem, são muitas as que o criticam.

Como explicar este mistério paradoxal?

Talvez, para começar, deva ser recordado que este paradoxo acompanhou quase sempre a carreira política de Cavaco Silva. Nunca foi propriamente elogiado pela chamada opinião publicada.

Em 1987, quando os votos conjuntos do PS, do PRD e do PCP derrubaram no Parlamento o seu governo minoritário, Cavaco Silva era tratado nos media como um perigoso inimigo da democracia. Surpreendentemente, obteve a primeira maioria absoluta nas eleições antecipadas que o Presidente Mário Soares convocou nessa altura (contrariando os apelos a que nomeasse um governo de maioria de esquerda).

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Cavaco Silva sempre foi indiferente ao que diziam dele na televisão ou nos jornais. E falava directamente para os eleitores. Os eleitores, ao que parece, gostavam do que ele dizia. Mas ele não falava para não dizer nada, ou simplesmente para tentar ganhar votos.

Em vinte anos de liderança do Governo e do Estado, toda a gente conhece os pontos centrais da mensagem de Cavaco Silva: disciplina, rigor, trabalho árduo, iniciativa, liberdade de empreender. “Deixem-me trabalhar”, é ainda hoje uma das mais célebres expressões do então Primeiro-Ministro Cavaco Silva, em resposta à enxurrada de críticas que o cercava.

Mas essa imagem de rigor e iniciativa não foi criada para Cavaco Silva por “especialistas de imagem”, nem por analistas de sondagens. Na verdade, essa imagem foi mais resultado do que ele fez do que de daquilo que ele disse.

Os seus governos de 1985-1995 modernizaram o país, que tinha sido tristemente estatizado pelo PREC, e consagraram a integração europeia. Os seus dois mandatos presidenciais, entre 2006 e 2016, garantiram a estabilidade e o regular funcionamento das instituições democráticas — apesar da tremenda crise que levou ao resgate financeiro de 2011 e aos duros sacrifícios que se lhe seguiram.

Por outras palavras, pode muito bem acontecer que a imagem solitária de Cavaco Silva esteja distorcida. Ele sempre foi solitário entre as chamadas “chattering classes”. Mas estava acompanhado da maioria das pessoas comuns, que lhe deram quatro maiorias absolutas. Talvez o sucesso popular de Cavaco Silva tenha precisamente resultado da sua coragem de enfrentar o pensamento politicamente correcto, dominante na nossa atmosfera cultural.

Cavaco Silva estava obviamente consciente desse vasto apoio popular. E foi nele que sempre apostou. Mas não o utilizou com propósitos populistas. Podia ter usado as quatro maiorias absolutas para atacar os partidos políticos e as instituições do regime representativo. Podia ter feito uma interpretação activista dos seus poderes, reclamando a legitimação do voto popular.

Não o fez. Pelo contrário, assumiu com rigor, por vezes considerado excessivo, as regras e tradições dos cargos institucionais para que foi eleito. Manteve, por isso, os dois mais sagrados princípios das democracias civilizadas: o de que todos os poderes estão limitados pela lei, e o do reformismo institucionalista (por oposição ao activismo imprevisível do líder providencial).

Acresce que o apoio das pessoas comuns a Cavaco Silva teve sempre, basicamente, um sentido modernizador: privatização dos sectores abusivamente nacionalizados, ética do trabalho e da iniciativa, abertura aos mercados europeus e globais, limitação de todos os poderes pela lei.

Em contrapartida, a hostilidade das chamadas “chattering classes” contra Cavaco Silva tinha (e continua a ter, em minha opinião) um sentido arcaico: protecção estatal de clientelas (em nome das chamadas “preocupações sociais”), receio da concorrência e da globalização, apelo ao activismo discricionário do poder político .

Em suma, aquele que tem sido retratado como o “provinciano de Boliqueime” pode na verdade ter sido um dos nossos políticos mais modernizadores e ocidentais dos últimos quarenta anos — a par de Sá Carneiro e de Mário Soares. E muitos dos que o descrevem como provinciano podem na verdade simplesmente exprimir um certo atavismo terceiro-mundista, ainda muito presente na nossa cultura política. Um atavismo que tudo espera do poder político, em vez de confiar na livre inciativa das pessoas e das famílias para melhorarem a sua condição — sob a estável e previsível protecção da lei, e em livre interacção com as espontâneas instituições intermédias da sociedade civil.

(Declaração de interesse: fui consultor político do Presidente Cavaco Silva no seu primeiro mandato, entre 2006 e 2011, assim como do Presidente Mário Soares, também no seu primeiro mandato, entre 1986-1990. Não mantenho, no entanto, qualquer relação profissional com eles nem com instituições a eles associadas).