A apresentação recente de um manifesto político por parte do Presidente da autarquia lisboeta foi, naturalmente, um momento relevante da vida portuguesa, que teve a calorosa participação de grande parte da classe política nacional, apostada em comemorar a grandeza de um dos seus mais ilustres membros. Manifesto político mais a mais caucionado pelo carimbo de um dos dirigentes mundiais reconhecidos como tal, concretamente o Presidente da República Francesa. Maior distinção seria difícil. Mas… e onde fica Lisboa?
Porque a questão é mesmo essa. Apesar da democracia nos ter trazido a possibilidade dos interesses e problemas das comunidades locais passarem a ser geridos por eleitos que deveriam ter por horizonte e missão a melhoria da qualidade de vida e do futuro da sua cidade, na realidade nem sempre isso acontece. E Lisboa, velha capital de um Império, assume a sua singularidade. Hoje, enquanto reconhecemos a obra de líderes autárquicos de cidades como o Porto, Oeiras, Cascais e outras, o caso de Lisboa é diferente. A cidade existe como entidade política autónoma, mas, na prática, funciona como estágio de políticos à espera de uma oportunidade de conquistar o País.
No nosso modelo de controlo partidário dos diferentes poderes públicos, nem os deputados representam eleitores, nem os Presidentes de Câmara são obrigados a representar munícipes. Por regra, representam os seus Partidos. Contudo, há excepções. Os portuenses reconhecem-se na direcção desassombrada do seu Rui Moreira e confiam no seu instinto e pragmatismo. Mesmo ao lado de Lisboa, na grande Oeiras, Isaltino Morais é a garantia de que as coisas funcionam e a vida avança. No prestigiado eixo Estoril-Cascais, Carlos Carreiras é indiscutivelmente respeitado pela sua visão e pela sua capacidade pessoal em manter o tradicional prestígio do meio. Mas Lisboa funciona numa galáxia diferente.
A Câmara Municipal de Lisboa é uma máquina complexa, pletórica de pessoal e de serviços que se vão sobrepondo com a passagem das sucessivas administrações. É uma organização que, depois do Ministério da Educação e do SNS, é um dos maiores empregadores do País. Ora, perante a dimensão dos problemas e do gigantismo da burocracia, os comissários políticos que os Partidos colocam na sua presidência sabem que o seu futuro depende da forma como conseguem navegar nas traiçoeiras correntes internas e que o seu objectivo é esperar pelo dia da sua oportunidade, evitando beliscaduras e anticorpos. Sobretudo, nada de se lançarem em aventuras de grandes rasgos, que são sempre fonte de perigos e podem ter resultados incontroláveis.
Justiça seja feita ao tão criticado Pedro Santana Lopes que, com enorme dificuldade, logrou melhorar o acesso à cidade, mas que já não teve a oportunidade, como gostaria, de revigorar os espaços do Parque Mayer e de Entrecampos, os quais, apelando a génio criativo, poderiam ter sido transformados em modernos pólos caracterizadores de uma nova cidade. Acontece que, no quadro de honra dos Presidentes de Lisboa, está alguém que nunca o foi – Aníbal Cavaco Silva – e que, primeiro com a construção do CCB e depois sobretudo com a Expo98 e a sua reconversão urbana, abriu a cidade aos novos tempos.
É um facto que, nos últimos anos, Lisboa foi testemunha de uma incrível onda de reabilitação e modernização urbana, fruto de dois acontecimentos para os quais as autoridades autárquicas não contribuíram: o descongelamento das rendas e a descoberta da nossa cidade por parte de estrangeiros em busca de uns dias felizes ou de um melhor porto de abrigo. Curioso que haja quem não se queira lembrar do que eram ruas decadentes e lúgubres. Estranho que haja pessoas para quem o progresso é sinónimo de pecado capital. Ou se quiserem, do capital. Nos últimos anos, investiu-se na construção e reabilitaram-se muitos prédios que estavam em ruína, criando valor para empresas, fornecedores e trabalhadores, e abrindo espaço para a actividade de restauração, hotelaria e comércio. E Lisboa ganhou vida. Ora, para este inesperado desenvolvimento, o contributo da Câmara Municipal de Lisboa consistiu na aplicação de taxas com vista à cobertura dos crescentes custos da sua burocracia.
Apesar desta onda de desenvolvimento económico, a situação não é, obviamente, de eldorado. O recente progresso – em resultado da pressão do mercado – não basta para garantir um quadro geral e consistente de desenvolvimento. Onde estão os serviços e os meios que podem assegurar uma continuação do investimento? Quanto tempo demora a aprovação de um projecto urbanístico? Porque não é melhorada a legislação e o funcionamento da justiça que congela e condena iniciativas? Por que razão vêem os promotores de investimentos os seus projectos suspensos e a sua reactivação adiada sine die? Problemas de habitação? Claro, aqui como em todo o lado, mas por que não existem hoje em Lisboa planos como os que Duarte Pacheco deixou para as Avenidas Novas? E onde estão os Norman Foster para completar os faróis de interesse com que as Descobertas de há cinco séculos ou o ouro do Brasil brindaram Lisboa?
Um domínio que não se cruza com facilidade com as preocupações políticas da liderança autárquica de Lisboa é o do apoio às artes. Investir na fruição artística pressupõe uma visão de longo prazo, não compatível com objectivos políticos imediatos. Lisboa tem hoje um nível de actividade cultural inferior a uma pequena cidade francesa, alemã ou italiana, para não citar mais exemplos. No entanto, nem sempre foi assim. Lisboa era, há três séculos, uma das capitais europeias da grande música, uma cidade onde extraordinárias obras musicais foram criadas e tocadas com o contributo dos melhores compositores e artistas da época, incluindo muitos Portugueses. É um facto que muito do que foi produzido na Europa por génios como Vivaldi, Bach, Rameau e Handel, entre muitos outros, também passaram pelo esquecimento, mas foram posteriormente recuperados para grande felicidade dos apreciadores de música dos nossos dias. Portugal, como se sabe, não cuida devidamente do seu património e a música não é excepção. O nosso riquíssimo património musical adormeceu séculos em arquivos fechados. Normal seria pensar que corrigir erros faz parte da agenda da liderança de uma comunidade. Foi, pois, surpreendente saber que a Câmara de Lisboa se recusou a apoiar uma recente iniciativa de Concertos de música antiga, concebidos por privados com a ambição de recuperar a memória pública da grandeza artística portuguesa do passado. No caminho das pedras para ascensão partidária, outros valores se levantam?
Lisboa é hoje uma cidade miseravelmente suja de graffiti, sem que se conheça uma única iniciativa, por mais tímida que seja, de corrigir esse indesculpável e inqualificável cancro urbano. Património urbanístico, antigo e moderno, é sistemática e permanentemente conspurcado, trazendo para as ruas de Lisboa a imagem do metro de Nova Iorque de há umas décadas. Porque não é revertida esta triste realidade? E isto para não falar do lixo que começa, lamentavelmente, a fazer parte da paisagem da cidade…
Para quando em Lisboa um Tierno Galván que entusiasmou Madrid ou um George Frêche que reinventou Montpellier? Até que isso aconteça, assistimos, com muito desalento, ao desfile de líderes com mera vocação nacional.
E é a nossa bela cidade que acaba por ser vítima deste equívoco.